Perdido - Um acento de revolta

 

Amigo, eu só quero fazer um boletim de ocorrência. Só isso. – repeti e insisti, lançando perdigotos impacientes e malcriados sobre o tampo, emprestando involuntariamente ao tom de voz um acento de revolta acumulada durante aqueles eternos minutos de mal atendimento. Uma revoada de maritacas explodiu num agudo canto gargalhado, sobrevoando o pátio próximo e contornando o prédio.

Garoto, você precisa se acalmar, viu? – recomendou ele ao olhar de relance seu companheiro na outra mesa e tornar a olhar para mim. Apoiou os braços na mesa, puxou uma folha de papel em branco e uma simplista e despretensiosa, hors-concours caneta francesa. Marcou um X na altura do cabeçalho e prosseguiu. – Seu nome?

Emílio Cariello. – respondi, cruzando os braços e as pernas, na altura do tornozelo, empertigando-me na cadeira mal conservada.

Idade? – continuava ele na arguição, anotando os dados no rascunho, sem levantar o rosto. Senti o suor molhar o filtro labial, o clima estava abafado, apesar da pancada de chuva que desabara no início da tarde.

33.

Endereço?

Hotel Cariello, centro.


Está… hospedado há quanto tempo? – perguntou após bater a ponta da caneta umas três vezes no sulfite, como se indeciso com a pergunta que faria em seguida. Léo Batista fazia a mesma coisa quando apresentava o jornal, apenas para avisar sua mãe que havia se lembrado dela, impossibilitado de mandar-lhe um beijo, como se estivesse em um programa de auditório.

Não estou hospedado, sou o proprietário. – respondi-lhe de pronto e franzindo a glabela, pouco entendendo que diferença fazia, a fim de elucidar o caso, quanto tempo eu estava hospedado em um hotel ou não. Eu estava hospedado lá a minha vida toda.

Ah, bem… para ser sincero, eu nem sabia que funcionava ainda. Mas vamos lá: o que aconteceu? – comentou malicioso e levemente sarcástico. Inspirei fortemente e preferi ignorar, mas tenho quase certeza que o seu companheiro de trabalho esboçou um sorriso debochado, iluminado pela luz azul do monitor.

Meu carro foi roubado. O hotel tem um pequeno pátio, mas como eu cheguei tarde ontem, estacionei numa vaga em frente ao prédio. Só dei falta dele após o almoço, quando minha irmã precisou usar o carro.

Queiroz, sabe do delegado? – perguntou um policial baixinho e barrigudo, os cabelos loiros perdendo espaço para os brancos, olhos pequenos num rosto nédio de expressão indiferente, a barba por fazer. Surgiu na sala, ignorando solenemente meu depoimento. Olhei em sua direção e ele me fez um breve aceno de cabeça, não a título de cumprimento, mas como num tácito esclarecimento de que a informação de que necessitava era mais importante que minha declaração.

Ah, tem uma irmã? – perguntou com um sorriso de canto de boca, erguendo o rosto e girando o corpo na direção do baixinho, tentando dar atenção a dois colocutores de maneira competente – mas se nem a mim ele dava conta, quanto mais a dois.

Não sei como isso vem ao caso. – reptei enrubescendo, a indignação esconsa no discurso firme, mas visivelmente adulterado.

Saiu tem uma meia hora para resolver aquele lance do banco. – respondeu ao adiposo e tacanho playmobil, franzindo o cenho e espalmando a mão para que eu aguardasse (ainda mais).

A mulher disse alguma coisa que preste? – comentou o pequenino, mais por curiosidade do que por necessidade de dar seguimento à conversa. Queiroz girou o tronco outra vez para minha direção e olhando-me seriamente, continuou a inquirição.

Pode me dar as características do veículo? – solicitou desprezando meu comentário anterior e baixando o olhar para o papel, respondeu ao colega. – Ainda não. Antes de sair o doutor comentou que ela disse não ter certeza sobre a aparência do homem, estava nervosa, enfim. Nem podia afirmar se era, de fato um homem, não tinha certeza. Os peritos estão lá, mas não conseguiram nada de importante até agora. É, meu amigo… Friburgo está se modernizando. Um assalto a banco? – concluiu perplexo, num comentário irrefletido e desnecessário, logo depois percebido e caricatamente disfarçado num pigarro.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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