Perdido - Friburgo está se modernizando

 

Não vai registrar isso no boletim de ocorrência? – perguntei ajeitando-me na cadeira, interrompendo suas divagações. A lombar começava a doer e o suor emergia em gotículas na testa, as quais enxuguei com uma das mãos. Além do calor, perturbava-me o desinteresse do policial pelo meu caso, anotando num lugar qualquer os dados que eu fornecia e que possivelmente iria parar no lixo, junto de maços de cigarro vazios, pacotes de biscoito e restos de chiclete.

O correto é registro de ocorrência. E sim, vou registrar. Estou apenas anotando tudo para organizarmos as ideias e depois criarmos o documento propriamente dito. Agora, se o senhor puder, diga, por favor, as características do veículo…

É um Fiat 147 1986, prata, motor 1.3…

Como é? – perguntou de súbito, parando de escrever e erguendo o olhar. A parede atrás de si era de um verde claro descascado em alguns pontos, com manchas provocadas pelo toque frequente do espaldar.

Desculpe, o que não entendeu?

Eu não entendi a parte que roubaram um 147 1986. – respondeu, deitando a caneta sobre a mesa e encarando-me com um sorriso sardônico.

Eu é que não entendo.

Convenhamos, mas o seu carro não é o que se pode chamar de a “menina dos olhos” dos ladrões de carro. – continuou, com ar de ironia, recostando-se na cadeira, que rangeu ao seu movimento. Bastava ele ir direto ao ponto, registrar a ocorrência e fazer com que fossem tomadas as medidas necessárias, iniciar as investigações e possíveis diligências, mas desviava o foco para assuntos paralelos que em nada contribuíam para solucionar meu problema. Porra.

Ora, e por que não? – perguntei ao descruzar os braços, erguendo o tronco num impulso. Mas que filho da puta! Que audácia. Podia ter sido uma bicicleta e ele não deveria fazer esse juízo de valor. Era meu carro e ponto. Relíquia de família, inclusive, adquirido zero quilômetro por meu pai. Minha indignação crescia na respiração acelerada a cada palavra que aquele boçal pronunciava, discurso idiota que parecia estar longe de acabar.

Esse não é aquele último modelo, quatro marchas, o tal motor… como se chamava? Fiasa? – enunciou com deboche, pegando a caneta novamente. Segurando-a com ambas as mãos, retirava e encaixava a tampa no oposto da ponta, desviando o olhar de mim, num comportamento quase infantil e descompromissado.


Esse mesmo. O mesmo motor de sessenta cavalos que faz sete quilômetros por litro, de zero a cem em dezessete segundos, extremamente eficiente nas retomadas e ultrapassagens, silencioso e eficaz. O motor do meu carro. – respondi enfaticamente e cheio de vaidade. É verdade que se tratava de uma herança, mas era uma herança da qual eu verdadeiramente me orgulhava, assim como o hotel. Beatrice não estava nem aí para ambos e eu não me importava com isso. Mas estes putos…

Tem certeza de que não estacionou em algum lugar e por acaso tenha esquecido? Talvez o senhor tenha bebido um pouco além da conta ontem a noite. – insinuou meneando a caneta em minha direção, no momento em que erguia o olhar novamente.

O senhor está achando que eu sou algum tipo de idiota?

Não seria a primeira vez e nem será a última.

Desculpe, qual o nome do senhor?

Diego Queiroz, Inspetor Diego Queiroz. Queiroz com Z.

Inspetor Queiroz com Z, qual o carro do senhor?

Eu não tenho carro.

Pois é. O senhor não entende nada de futebol e muito menos de carros. Espero que entenda, ao menos, do seu trabalho e faça logo esse registro de ocorrência, porque não vim aqui discutir nada disso com o senhor, apenas denunciar o roubo do meu veículo. Não é para isso que vocês estão aqui? – argumentei quase esbravejando, controlando-me para não ser incisivo demais. Os outros policiais desviaram o olhar em minha direção, parecendo ofendidos, e de mim para o Inspetor Queiroz com Z, cobrando-lhe silenciosamente uma atitude. Ele ruborizou.

Eu acho que está se alterando, jovem. – considerou, empertigando-se indignado, o ar saindo fortemente pelas narinas. Estávamos empatados agora e isso me parecia muito justo.

Queiroz, chegue aí… – convidou o Marquinho, levantando-se e seguindo para a varanda da entrada. Talvez fosse explicar algo sobre futebol, esclarecer que o Flamengo não vai ganhar porra nenhuma ano que vem, com Pollo ou sem Pollo; dizer que o 147 foi o primeiro carro no Brasil com motor transversal dianteiro e desembaçador traseiro, o primeiro carro a álcool fabricado em série em todo o mundo; o primeiro carro brasileiro com o estepe junto ao compartimento do motor… ou simplesmente dizer que era para ser menos prolixo e ir direto ao ponto quando fosse fazer um registro de ocorrência, pois quem vem a uma delegacia já chega puto e tende a ser problemático. Talvez.

Virei o corpo na direção deles. Conversaram por um minuto ou mais, Marquinho gesticulava com as mãos, fazia giros com um dos indicadores no sentido horário; Queiroz com Z ouvia calado, cabisbaixo, as mãos na cintura, com breves comentários incidentais, assentia meneando a cabeça ocasionalmente. Marquinho deu-lhe um tapa no ombro e retornaram ambos quando outro policial veio de uma sala no interior do prédio.

E aí? Bora dar um passeio? – perguntou sorrindo enquanto caminhava, ajeitando a arma no coldre, o cabelo fino e arrepiado feito um cabelo de boneca velha, um cigarro pela metade pendendo no canto da boca.

Que passeio? – perguntaram em uníssono ao depararem com o homem.

Ligaram agora para denunciar um carro abandonado na Avenida Campesina, com o motor ligado há sabe-se lá quanto tempo. Um 147 prata… – explicou o Boneca Velha, tirando o cigarro da boca e soprando a fumaça com os lábios finos pregueados para baixo.

É, jovem… Parece que você é um homem de sorte. Acho… que encontramos o seu carro. – disse Queiroz, encarando-me com os braços cruzados e um sorriso amarelo, parecendo mais satisfeito que eu.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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