Perdido - Messieurs et mesdames

 

Certa feita, exatamente no andar de cima, morava um casal jovem. O homem era um enfermeiro plantonista, cumprindo cerca de quatro plantões semanais, no Raul Sertã, além de uns bicos em hospitais particulares. Não era difícil perceber o dia em que ele estava de plantão. Eventualmente, eu cruzava com a mulher no saguão do prédio ou no elevador: as unhas pintadas de um vermelho rubi, logo cedo (que era para não borrar), duas sacolas de ingredientes para um jantar nababesco – ao menos o cheiro era excelente. Tomava um banho demorado, besuntava-se de cremes e perfumes, a calcinha enfiada no rabo, o vestido decotado… Ela era gostosa e sabia muito bem disso. Acontece que depois do jantar, a sobremesa era ela – e lá pela uma da manhã. A cabeceira da cama batendo com força na parede, devia reverberar dois andares acima e dois andares abaixo. E eu acordava pensando que estava assistindo a uma dominical corrida de F1 – ela gozava chamando o nome do marido (Airton! Airton! Airton!) duas, três vezes na mesma noite, e eu precisando acordar às sete para trabalhar. Puta que o pariu, haja energia. Seria cômico se não fosse trágico.

Pois é, ladies and gentlemans, damas y caballeros. messieurs et mesdames… Tem sujeito que acorda mijado, desesperado por uma inoportuna e premente dor de barriga, com a torneira da cozinha gotejando, com bebê chorando, com vizinho trepando… quem é que nunca passou por uma coisa ou outra? Se não passou, vai passar. Mas o leitor há de convir que ser acordado às seis horas da manhã por uma bolinagem erótica e cinematográfica é um privilégio para poucos, um presentão de fim de ano… um evento incomum e singular, desses que acontecem uma vez na vida e outra na morte, feito a passagem de um cometa.

Enquanto conversava com o Beto, peguei a primeira camisa de malha e calça jeans que encontrei pela frente, pus o tênis e parti sem café mesmo para o prédio do outro lado da rua. Café para quê? Eu não precisava de café. Posso ficar sem café, sem almoço e tudo o mais. Não poderia ficar sem Aimée, minha musa, paixão fulminante e arrebatadora. Desci apressadamente as escadas imaginando o que encontraria no apartamento da francesa… o mais provável, porém, é que eu não conseguisse nem mesmo entrar no prédio, quanto mais no apartamento. Mas viver… viver é melhor que sonhar.

Chegando ao hall do meu edifício, precisei clicar duas vezes na trava da porta, a fechadura estava com defeito e o síndico já havia sido avisado. Segui finalmente para o exterior e senti a baforada quente e pesada no rosto, apesar do céu nublado e carregado. Aliás, nada de incomum. Seria apenas mais um dia de verão na serra fluminense, não fosse pelo extraordinário cometa Aimée. Atravessei a rua, praticamente vazia, era pouco mais das seis e meia e quase não havia carros transitando. Alcancei a outra margem, assobiando "O dólar furado" e falseando os passos em paralelos soltos – o que nos era tão comum feito a demora para consertar o calçamento – passando por uma loja de calçados, uma pastelaria chinesa e enfim, o prédio com nome de pintora mexicana. A composição de seis andares, tinha a fachada em pele de vidro, granito marrom tabaco e material de alumínio composto. De frente ao blindex fumê, fingi apertar o botão do interfone e aguardei algum momento, para depois calcar a chamada do porteiro, cuja indicação era feita com um pequeno papel cortado num retângulo e colado com papel contact.


Bom dia? cumprimentou com a voz chiando na estática do interfone, preguiçosamente, e que na verdade queria dizer “Em que posso ajudar?”.

Bom dia, meu amigo! Tudo bem? – respondi de maneira afável (lembre-se de sempre ser simpático quando for pedir alguma coisa, dizia meu pai). É que eu estou interfonando para minha amiga e ela não responde.

Deve ser porque ela não está em casa. – concluiu prontamente a fim de me dispensar o mais rápido possível. O mundo anda cada vez mais violento, cheio de assaltantes, sequestradores e tarados caminhando por aí feito pessoas comuns para a gente ficar dando bobeira. Eu não daria.

Desculpe, qual o seu nome? – perguntei, tentando manter a tal conveniente simpatia.

Amarildo.

Sr. Amarildo, ela está em casa. Combinei ontem à noite que viria aqui cedo, talvez o interfone dela possa estar com defeito. Ela, inclusive, comentou comigo essa possibilidade e disse que o senhor… não se importaria em abrir o portão para mim. argumentei, apelando para seu ego. Sabendo que os moradores confiam em seu trabalho, ele abriria a porta para mim em pouco tempo.

– E porque o senhor não liga para ela? – perguntou ele, desarmando-me por um momento. Eu realmente não havia pensado nessa hipótese.

– Estou ligando, mas só cai na caixa postal… – respondi de pronto e sem refletir direito. A verdade é uma mentira muito bem contada.

O interfone ficou mudo por algum tempo e depois voltou a falar, uma pausa necessário para a reflexão. Dessa vez, a voz menos arisca parecia levemente propensa a me ajudar nessa maluquice. “A vida não é um filme pornô”, ecoava em minha mente, mas eu afastava a crise de consciência pensando na gostosa da francesinha esguia e nua, a pele eriçada pelo tesão. “Oh mon Dieu, oh mon Dieu!”

Ela disse isso, foi? – perguntou ele num tom monocórdico e pensativo.

Disse sim, senhor… – respondi reticente.

Desculpe, qual foi mesmo o nome que você falou? – perguntou o porteiro, como se eu já tivesse falado algum nome. Não tinha.

Aimée.

Aimée do quarto andar? – continuou a arguição, e eu erguendo os olhos para cima e fazendo as contas para saber se era no quarto andar mesmo.

Isso! – respondi o mais breve possível para manter a interlocução. Logo em seguida, um zunido desnecessariamente insistente destravou a porta de vidro fumê.

Girei a maçaneta e passei pelo pequeno saguão da entrada, a parede esquerda espelhada para dar a sensação de um largo corredor. Subi três degraus bem-acabados em mármore e parei em frente ao balcão de Amarildo. Sorri e ele se levantou para falar comigo.

Você me desculpe, mas infelizmente, essa cidade está cada vez mais cheia de assaltantes e bandidos de toda espécie… é a crise! – explicou-se esticando a mão para um cumprimento. Devia ter uns quarenta e oito anos mais ou menos, bastante moreno, os cabelos lisos partidos ao meio, um tanto grisalhos. Parecia ter desembarcado diretamente do Oriente Médio: magro, moreno e de nariz aquilino, o olhar morboso. Retribuiu o sorriso, mas os lábios finos esticados para as bochechas pareciam um garrancho, um desenho mal feito que não correspondia necessariamente ao seu estado de espírito.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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