Perdido - A vida não é um filme pornô

 

Segundo consta, ainda adolescente, uma jovem e franzina Susana jurou ao leito de morte do pai que casaria virgem e imaculada: sua honra estaria preservada até os banhos da igreja, desfilaria de branco, véu e grinalda, como manda o figurino e tudo quanto o mais a religião e a moralidade prescrevem. Pretendentes não faltaram, ela era jovem e bonita, olhos castanhos rutilavam sapecas no rosto dourado – provocando desde os moços mais respeitadores até os mais audaciosos. Pois que a promessa foi cumprida, evidentemente, mas não sem usar de subterfúgios vis e traiçoeiros, num descarado insulto à memória do pai. Permitiu-se a doce mocinha de um tudo fazer com os namorados: mão naquilo e aquilo na mão, aquilo em tudo quanto é lugar, desde que não tocassem na preciosa virgindade prometida. Há quem diga, inclusive que sua mãe, Dona Ana Caninana, quando na ocasião de um namorado um pouco mais atrevido e difícil de controlar, dava um jeito de lhes aplacar os ânimos no lugar da filha (e também os seus, vá lá, ninguém é de ferro).

O fato é que tudo isso era um grande mistério e se Beto tinha conhecimento, por menor que fosse, desses boatos, não havia certeza. E ainda, tomando-se essas histórias por verídicas, mesmo que ele mesmo tenha sido membro de tão fantásticas e sórdidas depravações (hipótese em que não acredito), nunca sequer tocou no assunto e nós é que não faríamos, é claro. Digo e repito que, ainda que considerasse tais coisas reais, não posso crer na anuência de meu amigo: para mim, Beto era uma espécie de bode expiatório nessa falcatrua toda. Era a peça que faltava: o marido exemplar de uma família exemplar, burguesa e religiosa, cidadãos modelos, cumpridores de seus deveres.

Acho que vou lá, cara… – balbuciei para mim mesmo, embora ainda estivesse com meu amigo na linha – que talvez tivesse pronunciado algumas frases no interlúdio que vergonhosamente não cheguei a assimilar.

X, você não deve estar variando muito bem. Vai fazer o quê lá? Cara, são seis da manhã. – censurou, a voz baixando quase num sussurro. Para Beto Já-Pra-Casa, respeitável homem de família, talvez fosse difícil imaginar uma realidade com uma aventura erótica dessas, mas a verdade é que esse tipo de coisa, por mais incrível que pareça, acontece todos os dias por aí.

Sei lá… de repente ela está precisando de alguma ajuda… – objetei num sorriso sacana e entusiasmado, dando outra tragada. Quem sabe? Sim, as ideias começavam a se tornar mais claras e subitamente, Beto pareceu se estender prolongadamente. E o tempo passou a ser meu maior inimigo.

Ajuda? Você pensa o quê? Que vai chegar lá, a francesinha vai te convidar a entrar, vocês vão trocar meia dúzia de palavras e trepar? A vida não é um filme pornô, meu chapa. aconselhou com a firmeza de um pai, o filho cabisbaixo a ouvir resignado. Estalei os lábios num muxoxo desconcertado. Beto, Beto… se você soubesse…


Sabia que o cinema e a fotografia – além de Aimée, é claro – são invenções genuinamente francesas? Os franceses são foda cara. – desconversei num sorriso, cada vez mais excitado, apertando os olhos interessadamente.

O voyeur também é… – comentou com ar de desprezo. Enquanto isso, a francesa diminuiu a intensidade dos gemidos, no último verso da canção, parando ofegante à beira da enorme janela. Depois desapareceu no interior do apartamento e não pude mais vê-la.

Não te falei que eles são foda? Deviam ter colonizado o Brasil. Ia ter Aimée para tudo que é lado. – afirmei, empertigando-me em frente a janela e tentando rumar a conversa para o fim. Já começava a me arrepender de ter enviado a foto para ele. Porra, Eva, a gente vai ser expulso do Paraíso!

Então vai lá e depois me diz se comeu a francesa mesmo! – respondeu-me com um sorriso escarninho. Já parou para pensar que pode haver alguém com ela no apartamento? – continuou em sua argumentação, feito um promotor de acusação, apresentando provas e inquirindo testemunhas. Inveja pura. Sua vida, salvo raríssimas exceções, era de casa para o trabalho, do trabalho para a casa, de casa para a igreja. E da igreja? Também para a casa. A esposa e sogra a velarem contumazes para que não se misturasse a nós, meros mortais e pecadores, súcia de patifes e cafajestes, felizes cachaceiros de temerária vida e reputação. Coitado do Beto. Não me aguentei.

Viver é melhor que sonhar, meu amigo. E o nome dela é Aimée; mais respeito, viu? – retruquei com autoridade e bom humor, meu amigo que se resolvesse com as mazelas de seu casamento. Igualmente à vizinha, retornei ao interior do apartamento: eu precisava ser breve ou perderia irremediavelmente a janela de lançamento.

É… você sabe tudo mesmo, hein! – afirmou em contrapartida. Já pra casa, Beto e deixe-me aventurar por esses mundos que você desconhece; volte para sua digníssima esposa e seu recato, isento desses lascivos mistérios da vida. Mesmo que seja para dar com os burros n’água, quebrar a cara e contar a derrota no Bar do Balboa. Foda-se. Eu sou o famigerado X, mestre na arte da sedução e do amor, forjado no fogo e na tempestade.

É incrível o que gente descuidada deixa exposto nas redes sociais. Eu sei praticamente tudo, meu irmão, tudo sobre ela. Aimée é enteada de um funcionário do governo e a mãe dela também é bem gostosa. Tem vinte e dois anos, mora no Brasil há dez, faz aniversário em novembro, e já viajou por um bocado de países da Europa – deve ter dado pra caramba por lá. Faz Publicidade naquela universidade nas Braunes. – respondi ao aparelho, agora em viva voz. Traguei o cigarro pela última vez e abandonei a binga no cinzeiro do criado mudo, expelindo a fumaça enquanto caminhava pelo apartamento procurando uma camisa pra vestir, mas a organização das coisas não me deixava progredir muito rápido.

Você é maluco! – disse após um breve silêncio. Shh… cuidado para não acordar a Susana, Beto. São seis da manhã, seu puto.

Eu sei que você deve estar muito curioso para saber como termina o episódio de hoje do grande sucesso As aventuras de X no País das Maravilhas, mas eu tenho que ir, meu camarada. Acho que aconteceu alguma coisa, a Aimée saiu da janela… comentei num tom levemente sério e sarcástico, apenas para causar impacto, assim que catei uma camisa e uma calça no guarda-roupa.

Deve ter chegado onde queria, não é? – sussurrou novamente, parecendo ignorar minha pressa, parecendo estar mais interessado na conversa do que no assunto propriamente dito. Agora não, meu amigo. Outra hora. Vesti a calça e sentei-me no chão para por os tênis.

Não sei, mas vou descobrir. Agora deixe-me ir, desculpe, não posso perder tempo… Você entende, não é? – expliquei-me ao recolher o telefone em viva voz, anteriormente depositado sobre o tampo da pequena mesa de jantar e caminhar para a porta. Junto dele, um pacote de pães de forma aberto, um pote de margarina com uma faca suja em cima da tampa, uma xícara com restos de café, farelos displicentemente espalhados.

Vê se não arruma confusão.

Beto, você parece minha avó.

Porra, X, não fode… – respondeu secamente e desligou, no momento em que eu batia a porta, de qualquer maneira. Desci os degraus apressadamente, guardando o celular no bolso, os sensores de presença acendiam as luminárias à medida que eu alcançava o patamar dos andares inferiores, a imagem de Aimée nua na janela corrompendo meus últimos sinais de decência, guardados em algum lugar da minha mente, talvez sob o tapete. A volúpia, astuciosamente, sussurrava sortilégios para não acordar o bom senso e eu não podia, nem queria resistir. Confesso, porém, que senti um pingo de incerteza me assombrar: talvez Beto, com toda sua ilibada conduta e invejada honradez, estivesse certo, há perigo na esquina e eu devesse realmente considerar que poderia sim, dar com os burros n’água. Ainda que essas aventuras aconteçam todos os dias por aí, a vida não é um filme pornô. Mas eu sou X, e me esqueço disso quase todos os dias.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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