Perdido - Um palacete na Vila Amélia

 

A delegacia ocupava há cinco décadas um palacete na Vila Amélia, sede da antiga chácara de Antônio Martins, que levava o nome de sua única filha, entre os sete de sua prole. Apesar de deteriorado por longos anos de maus cuidados, era um digno representante do movimento eclético, com elementos do estilo vitoriano, ostentando acabamentos em formas e padrões decorativos de fachada assimétrica, múltiplas entradas, pé direito alto, porções de alvenaria aparente, mansardas e sótão, telhado com varias águas, além de uma discreta varanda frontal. O magnífico vitral vindo da Europa, um mosaico multicolorido em tons de azul, decorava os lances da escadaria de pinho de riga – e se estende pelos dois pavimentos. No pátio, eram dez celas na carceragem, cuja laje de cimento sem outra espécie cobertura, produzia um extenuante aquecimento em dia de sol.

Eu queria fazer um boletim de ocorrência. – afirmei ao entrar na sala do prédio centenário. Algumas mesas estavam dispostas na sala com alguns poucos policiais prestando o serviço. Um deles, sentado por trás do móvel com com computador e muito satisfeito de si, entretinha-se com um smartphone.

Primeiramente, boa tarde… – disse com ar de pito, sem me olhar, absorto com o que quer que seja que estivesse emoldurado no aparelho. Era um homem por volta de seus quarenta e três anos, moreno, cabelo crespo curto, a camisa de malha apertada propositalmente para exibir a boa forma. O distintivo de inspetor de polícia pendurado no pescoço balouçava quando movimentava discretamente o tronco.

Boa tarde… – respondi sem jeito e repeti. – Eu queria fazer um boletim de ocorrência.

Você quebra essa, Queiroz? – perguntou outro policial, ocupado com qualquer coisa em sua máquina. Paciência.


Claro, claro. – respondeu num sorriso distraído e depois voltou-se para mim, ainda deslizando o dedo na tela do aparelho e sem me encarar. – Um momento, jovem. – murmurou e eu suspirei impaciente. – Tu viu essa, Marquinho? O Bottinelli, do Universid Católica, assinou por dois anos. “El Pollo”! – finalizou empostando a voz para enaltecer o apelido do estrangeiro. – Ano que vem o côro vai comer, brother! – concluiu apoiando o celular na mesa, num sorriso empolgado, batendo as mãos e esfregando rapidamente as palmas.

Err… eu preciso registrar uma ocorrência. – insisti aproveitando o interlúdio de sua fala e só então ele pareceu notar, de fato, minha presença.

Onde você viu isso, cara? – perguntou o interlocutor incidental, apertando os olhos para enxergar algo no monitor, incapaz de perceber o que estava à sua frente.

Recebi aqui no grupo de mensagens… hoje em dia, informação rápida e certeira está na mão, no celular. A velha guarda segue uma cartilha obsoleta e tem os dias contados.

Brother, gringo no Flamengo, só o Petkovic e ainda assim tenho minhas ressalvas. – asseverou o homem, esticando os braços para cima com os dedos entrelaçados e ruborizando o rosto contorcido, apertando a voz ao final da assertiva.

Vamos lá, jovem. O que vos aflige? – perguntou apoiando os cotovelos sobre a mesa, os dedos esticados pressionados uns contra os outros, na altura de seu rosto, agora sério e enigmático. Outros policiais circulavam com pastas nas mãos, xícaras de café, ensimesmados em suas funções, tarefas e (por que não?) distrações.

Porra, vá lá, tudo bem. O fato é que eu estava desse lado da mesa, e não no lado de lá, numa posição vulnerável e incômoda; todo aquele comportamento, apesar de muito natural, sugeria desdém: uma indiferença contundente que envenenava todo o serviço público do Caburaí ao Chuí e desde que estas terras eram tupinambás.

O bom senso era compulsório tanto deste lado como do outro. Não era. Para alegria de Darwin, Galton, Simon e Garfunkel, talvez fosse algo hereditário ou um tipo de modificação genética realizada pelo europeu, com requintes de crueldade, por motivo torpe e sem condições de defesa. Não resisti e bufei, tornando-me supercilioso e franzindo os lábios. E coisa que funcionário público abomina é cliente aborrecido e mal encarado.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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