Perdido - Um espetáculo na sacada

 

Os primeiros índios ao terem contato com o homem branco recusaram-se a posar para retrato, pois temiam ter suas almas roubadas para o registro no papel. Fico pensando nos curumins correndo para se esconder nas ocas, que o poderoso Yamandú não permitisse que seus angatus fossem assim inescrupulosamente surrupiados. O medo era compreensível, para eles era isso o fim da linha, a perdição completa, sendo alma e corpo a mesma coisa. E no que nos tornamos? Hoje em dia, ninguém parece se importar muito com as próprias almas, elas que se virem, mantidas em cativeiro por celulares (ou em lugares ainda mais obscuros), feito vaga-lumes em garrafas de vidro. Mal sabiam os franceses que, séculos depois, a fotografia estaria ao alcance das mãos… “Ao alcance das mãos...”, pensei. Era assim que eu desejava Aimée: seu corpo e sua alma. Quer saber? Talvez o índio tivesse razão… mas agora… agora é tarde demais.

O celular. Eu ainda me sentia um tanto desorientado pelo sono e ainda mais pela minha magnífica visão matinal. Aimée continuava a música e os gemidos libidinosos, mas aquilo não duraria muito tempo, eu sabia. Busquei o aparelho no tampo do criado mudo, em suas gavetas; sob o travesseiro; na fresta entre o colchão e a cama (e também debaixo dela). Nada. No entusiasmo da busca, derrubei Dona Flor e seus dois maridos no assoalho de tacos de madeira, que absorviam razoavelmente o som e mantinham a temperatura agradável em várias estações. Dona Flor, Vadinho e Dr. Theodoro espalhados pelo chão. Apoiei as mãos na cintura, o desespero começou a tomar conta de mim, a respiração tornou-se rápida e curta. Não sabia se continuava a procurar pelo smartphone ou voltava para a janela. Aimée, Aimée, minha adorável Aimée… espere por mim! Já que não posso tê-la em minhas mãos, em meus lençóis, concede-me apenas esse desejo. Sim, os lençóis! Era isto!

Lancei-me sofregamente ao colchão, tateando a superfície até encontrar o celular, perdido em meio à malha de algodão, ainda aquecida pelo meu corpo. Desbloqueei a tela com gana e pouco cuidado, enquanto seguia para a janela. Subitamente, o celular tornou-se menor do que parecia. Aproximei ao máximo o zoom, a fim de melhor capturar as imagens, os olhos da câmera esbugalhados, quase saltando das órbitas, a saliva escorrendo pelo canto da boca. Delícia em francês é Aimée, definitivamente. Eu a admirava à distância, em absorta e atenta mirada. Após o clique, surgiram as opções para postar a foto – como se toda foto necessitasse ser postada. Fui tentado pela tecnologia, Eva, suasiva a oferecer a maçã… e sim, enviei sem pestanejar o registro pro Beto, com direito a uma pequena legenda, só para provocar: “Viva o amor, viva o sexo! Viva prazer e o clímax nas janelas dos apartamentos!”. Em questão de minutos, uma enxurrada de comentários surgiu em resposta à mensagem e novamente senti-me indeciso, agora entre a atenção à Aimée – que se tornava cada vez mais frenética (“Oh mon Dieu, oh mon Dieu!”), ou a resposta aos comentários do meu amigo.

Beto Já-Pra-Casa – Cacetas

Que porra é essa

Eita

Cara... é isso mesmo?

Eu – Papai Noel trouxe meu presente atrasado

Beto Já-Pra-Casa – Que porra é essa, mané!

Eu – Minha vizinha

Beto Já-Pra-Casa – Porra

Ela tá fazendo o que eu acho que está?

Eu – E cantando Edith Piaf


A conversa através de mensagens foi rapidamente interrompida quando o aparelho começou a tocar, Beto estava ligando – e Aimée continuava a apresentação na janela do apartamento. Um espetáculo para ninguém por defeito. Ouvi dizer que um cantor nordestino faz um espetáculo na sacada de sua casa em Recife, na semana do Carnaval, o público se amontoando na rua para assistir, dancinha para cá, dancinha para lá, mas meu amigo… nada se comparava ao show da minha francesa. Eu tinha a absoluta certeza de que poderia passar a festa momesca inteira assistindo a um evento dessa magnitude. Danem-se os confetes e serpentinas, mamãe eu quero é Aimée.

Fala Beto… – atendi ao telefone, num tom monocórdico e displicente. Beto era um excelente amigo, divertido, inteligente, bom confidente, melhor conselheiro. Um elegante companheiro de uma única cerveja, na última sexta do mês. Grande Beto.

X, isso é aí é sério? Ou é alguma sacanagem? São seis da manhã, cara! – perguntou aos sussurros. Devia estar se escondendo de alguém. Senhora Dona Susana, para ser mais exato. Pois é. Igualmente proporcional à tantas qualidades, Beto era um toleirão, um paspalho, por assim dizer, para sempre acorrentado ao calcanhar da esposa. Obediente e respeitoso a horários, costumes, submisso as vontades e valores da mulher, megera de trinta anos ainda incompletos, que em tudo saíra à senhora sua mãe, jararaca da pior estirpe, sogra do pobre do meu amigo Roberto Carlos.

De certa forma, é sacanagem, não é? – respondi num sorriso. Aimée virou-se, erguendo as mãos para cima, fez um coque de qualquer maneira e girando nos calcanhares, gargalhou durante um verso da canção. Que filha da puta sacana…

Você entendeu, porra! – reclamou também num sorriso, um sorriso sussurrado, a voz bem humorada, porém contida e sorrateira. Era cedo, muito cedo, para ser bem franco e ele devia temer acordar a mulher – e isso sim, seria motivo de briga das boas. Como explicar que trocava informações com o famigerado X sobre uma mulher nua na janela do apartamento?

Beto e Susana não tinham filhos, apesar do desejo da esposa. A verdade é que eu acho que o organismo de Beto, motivado por um medo inconsciente de perpetuar tal espécie de víbora transcendental, o tenha psicologicamente esterilizado. A mente é capaz de coisas extraordinárias.

Cara, a minha vizinha – lembra daquela francesa que te falei? – está nuinha em pelo (aliás, muito pouco pelo) na sacada do apartamento dela. E cantando e gemendo em francês. – expliquei, enquanto voltava ao criado mudo e batia um cigarro do maço. Acendi no retorno à janela e, após uma longa tragada, apertei os olhos para enxergar melhor a moça. “Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal”. Beto suspirou e soltou um “putzgrila” quase inaudível.

Pu-ta-que-pa-riu… – balbuciou em sequência, absorto, o telefone trêmulo ao ouvido. Se aquilo era demasiado fantástico para mim, sujeito metido em tudo quanto era sacanagem, ainda mais para o Beto, que fazia parte de um universo quase desconhecido de respeitosos maridos, disciplinados e de elevada conduta, invejada honradez, cuja capital e cúpula era o grupo de oração da igreja. Mundo em que persistia Roberto Carlos: Betão, Beto ou Betinho era só para nós, os patifes e cafajestes do submundo que tentavam o marido exemplar de Dona Susana, da qual bastava o implacável olhar, um nem tão discreto pigarro, para que o homem se aprumasse todo e baixasse o tom de voz, quase assumindo a posição de sentido. Dava pena vê-lo assim, feito um cachorro medroso. Meu amigo, mas um tremendo paspalhão, pau mandado, cachorro de madame.

Se ela já era deliciosa quietinha na dela; assim, então… – proclamei com satisfação, as ideias ganhando corpo em minha mente, fulgindo como clarões pirotécnicos. Por que não?

Porra, eu não dou essa sorte… – respondeu ele com um pesar um tanto caricato. Ele sabia muito bem que uma sorte dessas representava mais um Cavalo de Troia que um desígnio da Fortuna.

– Fala sério, Beto! Pensa bem: imagine (só imagine) uma situação dessa aí. Você acorda com uma mulher gemendo do outro lado da rua, cantando em francês. Levanta sorrateiramente e se aproxima da janela para verificar e descobre que a moça está peladinha na sacada, rebolando os quadris e bolinando-se publicamente. Você tem a brilhante ideia de mandar a foto para um amigo e se distrai conversando com ele, nem percebe que a Susana está bem a seu lado. “Bonito, hein?”, repreende ela e absorto, você tem a audácia de responder, como se à própria consciência: “Ò, se é…”. Imagine, meu amigo. Apenas imagine.

Beto calou por segundos, talvez conferindo se a mulher não estava realmente ao seu lado, assim como eu havia sugerido – e subitamente, também eu fui tomado pela expectativa tão extraordinária. Apostaria na loteria caso tivesse acertado, apesar de não ser tão difícil assim de concluir. Beto Já-Pra-Casa. A alcunha insultuosa de nosso preclaro e impoluto personagem surgiu quando, certa feita, sua mulher apareceu em frente ao Bar do Balboa, imponente feito uma poderosa entidade a cobrar por seus preceitos. Era aniversário do Emílio, numa última sexta-feira do mês, e nos estendemos um pouco mais, é verdade, rindo e contando piadas, embora Beto estivesse relativamente acanhado (só depois do incidente me dei conta de que verificava amiúde o relógio). Daniel foi o primeiro a avistar Susana, parada na calçada com os braços cruzados, a encarar o marido, com o semblante fechado, num contagiante e desconcertante mutismo – sim, ela não disse nada e nem precisava dizer. O silêncio então imperou no salão e, levantando-se elegantemente, Beto desculpou-se e abandonou a cerveja pela metade, saindo do bar em passos comedidos, quase calculados, acompanhando a esposa que rompera marcha na calçada, em tácita ordem para ser seguida. Aí dele se não a seguisse.

O apelido pegou na hora, mas ele nunca fez ideia. Assim como eu não fazia ideia de sua vida pregressa e dela nada podia falar; já o conheci casado, homem de família, esposo exemplar e honesto, casta reputação – conduzido com rigor por uma poderosa coleira invisível, diga-se de passagem. Até prova ao contrário, sempre fora uma excelente pessoa. Contudo, quanto à senhora sua esposa… bem, quanto a ela… Não se podia provar nada, é claro, nada além de disse-me-disses, conversas de“um amigo de um amigo de um amigo”, nada que pudesse ter bases concretas confirmadas, mas perfeitamente capaz de fomentar com requintes a imaginação de qualquer um. Eis que Susana, quem diria, com toda aquela pompa de moralismo e vernizes de puritana, tinha impudica fama percorrendo à boca miúda, filha de um passado obscuro, pormenores haviam sido esmiuçados, detalhados e confirmados por sabe-se lá quem, cujo nome se perdera nas areias do tempo… enfim. Não se podia provar nada, mas… coitado do Beto.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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