Perdido - Chamai-me X


Era para ser um dia qualquer, como qualquer outro. Um intervalo de tempo criado pelo homem, da aurora ao crepúsculo, em que os fatos ocorrem sucessivamente e sem escrúpulos, às vezes tão indolentes e costumeiros que mal se fazem perceber, dissipando-se nas areias do tempo. Apesar disso – e incrivelmente por isso – aquele foi um dia estranho ou digamos… inusitado. Não um desses dias em que ciganas leem mãos nas calçadas, em que trocos são esquecidos nos bolsos e balas são vendidas nos sinais de trânsito. Não, nada disso. Nem mesmo amanhecera com o céu límpido nesse florão da América, mas quem é que precisa de sol quando os fatos valem por si só?

Chamai-me X. Um homem feito, um puto qualquer graduado em papo furado e cantadas baratas, mestre na arte da sedução e do amor que, no auge de seus 33 anos, orgulhando-se de ainda não ter constituído família, acordou assustado, murmurando consigo mesmo, a face estremunhada, os olhos semiabertos, ainda pregados de sono.

Que-por-ra-é-es-sa? – balbuciei silabicamente. O blackout tornava o ambiente completamente escuro, e era impossível saber que horas seriam sem consultar o celular.

O som continuava, um choro fininho, que de vez em quando aumentava de tom. Talvez fosse uma música… sim, era o que parecia. “Non! Rien de rien, Non! Je ne regrette rien!” . Esfreguei as vistas e suspirei, eu não conseguiria dormir com aquilo, principalmente porque aos poucos eu percebia que a voz era da Aimée, a vizinha do prédio do outro lado da rua, que morava a dois andares abaixo do meu. Aimée, “luz da minha vida, labareda em minha carne”. Ai-mée: um gemido de prazer, os lábios tocando-se de leve e demoradamente. Ai. Mée.


A outra edificação distava cerca de cinquenta metros de onde eu estava, de modo que não era muito difícil observá-la, sempre que possível. Uma ninfeta francesa de vinte e dois anos que chamava a atenção sem fazer muito esforço. Tinha por volta de um metro e setenta, ruiva de olhos azuis e cabelos sedosos e brilhantes. Em seu perfil virtual havia dezenas de fotos performáticas, com poses, caras e bocas, em praias, serras, fazendas, com um sem número de visualizações e elogios nos comentários.

Pensei que fosse voltar a dormir, o choro de Aimée, se tornou distante… e então, mais forte ainda. Levantei aos tropeços, afastei o bloqueador e fiquei momentaneamente cego com as luzes externas. Já havia amanhecido, afinal. Quando, enfim, me recuperei, pude avistar minha musa francesa, completamente nua, apoiada na janela de seu apartamento, cantando a plenos pulmões. “C'est payé, balayé, oublié, Je m'en fous du passé!”

Meu coração acelerou de imediato e uma excitação crescente tomou conta de meu corpo. Então… ela não chorava… Puta que pariu! Minha vida, minhas alegrias, hoje, começam com você, Aimée! Ah, o mundo precisa mais disso! Viva o amor, viva o prazer, viva o sexo! Viva os gemidos femininos com sotaque francês!

Aimée era a volúpia encarnada, a Afrodite de Botticelli, profana e sagrada, gemendo melodiosos e lascivos ais na sacada, Édith Piaf a deslizar buliçosamente em seus grandes lábios, os pequenos e bem desenhados seios à mostra. “Oh! S'il vous plaît!”, suspirava a ninfeta em alto e bom som, em sua performance erótica, matinal e internacional, sem importar-se com público. Quanto atrevimento!

Nada mais me importava agora. “Je me fous du passé… je repars à zéro”. Quem pensa em crise econômica internacional, preço da gasolina, ou problemas diplomáticos diante de uma cena dessas? Todos os problemas se extinguiram, de uma hora para outra, como num passe de mágica. Aimée era um bálsamo, o encanto, o deleite, o prazer; sereia a arrastar marinheiros para o fundo do mar, minha perdição. Em verdade, uma maneira deliciosa de se perder.

Como deve ser delícia em francês, confidente leitor?

Ora! Isso era o que menos me importava naquele momento, eu não podia desgrudar os olhos daquela cena, fosse em francês, português ou tupi guarani, paralisado e boquiaberto, a mente fervilhando e fantasiando, apaixonada e imprudente. O corpo transmutado em pedra, rijo e imóvel, era como um bloco só, paralisado em frente ao caixilho envidraçado; a alma evolava-se pela janela, sobrevoando a rua em direção ao propínquo edifício, templo do amor e apelo da carne, tomando a moça em seus braços correndo os dedos e os lábios em sua pele e cabelos, tão magnífica representação da vida.

Ainda acordava, aquele bucólico extremo da cidade, entre bocejos preguiçosos e remelas sonolentas, gorjeios de pássaros em rasantes de uma árvore a outra, mas não dorme a vida, aqui ou em qualquer parte do mundo. A vida não para e segue deslizando, implacável, em toda sua plenitude, nos trilhos do destino. A vida, poesia em prosa, verso e rima, não para. Naquele exato momento, pessoas nasciam, pessoas morriam, dormiam e acordavam, pessoas trepavam – porque sexo também é poesia. Será que em algum lugar no mundo, de igual maneira, alguém contemplava por uma indiscreta janela, ainda que por um breve instante, doce viço e exuberância, luxúria em tão grande esplendor? Recuso-me a acreditar nisso. Trata-se de um evento único e singular, profuso em sentimentos e emoções; ansa efêmera escorrendo pelas mãos. Poesia, pura poesia.

Aimée, Aimée, minha adorável Aimée… com seus juveníssimos contornos, timbres, libidinosos contorcionismos, era a mais sublime criação francesa. A humanidade sobreviveria muito bem sem o balão de ar quente, o refrigerador, o secador de cabelo, o cinema, a fotografia – talvez até mesmo sem a queda da Bastilha. Eu, porém, já não tinha tanta certeza se poderia subsistir sem Aimée. Sem ela, a vida seria tédio profundo, uma eterna sensaboria, silêncio contundente e rascante. E embora soubesse que cenas tão insólitas não sairiam da minha mente nem tão cedo, era prudente não arriscar.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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