Perdido - As faces de uma mesma moeda

Saltei do ônibus e atravessei a rua, antes mesmo que o semáforo fechasse, desviando de alguns carros que transitavam lentos. Contornei o Edifício Itália (reza a lenda ter formato de suástica), virando na direção da Avenida Campesina; em pouco tempo eu estava encharcado: a calça jeans pesada pela água e o tênis ensopado, dificultavam o movimento das pernas. Na altura do encontro dos rios Cônego e Santo Antônio (que formam o Rio Bengalas), removi com certo embargo a bolsa de pano do interior da mochila e desfiz-me do invólucro maior atirando-o no curso d’água, que naquele momento já possuía um volume bem acima do normal.

Pronto. Ainda era possível ouvir ao longe o som das sirenes, agora inofensivas, embora dignas de atenção. Eu já alcançara a rua que leva o nome da centenária banda sinfônica, aliás, êmula da Euterpe (e que também dá nome a logradouro). As duas são como Garantido e Caprichoso, Flamengo e Fluminense, Monarquia e República, com adeptos, partidários e defensores incansáveis da moral, reputação e história das castas e probas instituições, por vezes alcançando os extremos em seus discursos, tão embasados em argumentos. O que não falta neste mundo são essas rivalidades exacerbadas, esses maniqueísmos que opõe lados como se antagônicos fossem. Para mim isso tudo sempre foi tal como feijão e arroz. Há quem prefira um ou outro, é verdade, mas o que seria de nós sem ambos? O que é bom e o que é mau, afinal? Não são as faces de uma mesma moeda?


A calçada era estreita e alta, um pouco deteriorada pelo movimento das raízes das árvores. Os flanelinhas, tão comuns naquele ponto da cidade, haviam desaparecido por conta da chuva. O carro estava parado a cerca de uns trinta metros, próximo a uma ameixeira de inverno. O design, revolucionário em sua época, de cantos e detalhes quadrados, o dissimulavam entre os outros mais modernos, uma espécie de mimetismo urbano na selva de pedra incrustada na Serra Fluminense. À medida que eu me aproximava, sentia o corpo ser atraído, arrastado por uma indócil correnteza, o coração acelerado, a respiração curta e ofegante, debatendo-me nas pedras escorregadias, cobertas de limo, restolhos de vegetação me levavam cada vez mais ao fundo, em meio a uma lama espessa, numa espiral vertiginosa cujo fim era um abismo de onde meu corpo e minha alma jamais retornariam.

Antes de entrar no carro, molhei os pés no volume de água que corria junto ao meio fio. Bati a porta, sentindo um incômodo calafrio, a temperatura deve ter caído uns cinco graus. Atirei a bolsa no banco do carona e suspirei aliviado. O vento trouxe novamente o uivo da polícia, mas estavam longe, muito longe de mim. Perseguiam um fantasma, alguém que não existia, um espectro maldito, uma sombra nefasta que não se pode tocar. Segurando firmemente o volante, gargalhei por minutos, sentindo a adrenalina correr implacável em minhas veias, as lágrimas emergindo com vigor, o pranto quente molhando o rosto contorcido por um súbito êxtase. Controlando-me, pus a chave na ignição e dei a partida, ainda sentindo o riso surgir em borbotões e solavancos, os quatro tempos do motor imperceptíveis, as emoções sólidas e quase tangíveis. Abri o porta luvas e peguei um maço de cigarro, prendendo um com os lábios e acendendo-o logo em seguida com fósforos. Fiat Lux. Era de filtro amarelo, da marca mais vulgar, ignóbil e perniciosa que pude encontrar. É assim que deve ser. A bolsa, jogada de qualquer maneira no assento, estava tão encharcada quanto a mim, mas milagrosamente conservara intacto o dinheiro no envelope. Engasguei com a fumaça enquanto dedilhava as cédulas novas, sedosas e sem jaça, custando a me refazer, mas sorri ao alertar que também isto devia ser registrado no bloco de notas.

Liguei o autorrádio. A estação, sem mácula de qualquer interferência, chiado ou estática, tocava uma canção em que os violões chamam tanta atenção quanto a letra, quase como a relação de uma moldura com a imagem propriamente dita. “Mesmo que o mundo acabe, enfim, dentro de tudo que cabe em ti… Mesmo que o mundo acabe, enfim, dentro de tudo que cabe em ti…”. As emoções, tão polimorfas e arredias, debatiam-se obstinadas com asas barulhentas na superfície da lâmpada, numa correnteza indócil e voraz, suja, uma sinfonia de vozes alcançando os extremos em seus discursos, bem e mal. De dentro para fora, tentei tocar a superfície, mas sorri aos borbotões, a gargalhada mais vulgar, ignóbil e perniciosa que pode me encontrar, o rosto contorcido por um súbito êxtase.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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