Perdido - O que não é visto, não é lembrado


Desci as escadas, sentindo o coração vibrar dentro do peito, a respiração levemente acelerada, atento a possibilidade, ainda que pouco provável, de Cristina ter me entregado aos guardas ou a quem quer que seja. Trancariam a agência. Os homens posicionar-se-iam de armas em punho, cães erguidos, palavras de ordem. Os demais clientes em pânico, deitando ao chão, gritando, chorando, tumulto generalizado. A polícia chegaria em menos de dez minutos, eu seria rendido, algemado e conduzido à delegacia. Fim da linha. Eu poderia reagir, lutar, mas àquela distância, não conseguiria ao menos desarmá-los, tampouco retirar-me dali sem que tiros fossem disparados. Aqueles homens, embora treinados, nunca haviam participado de um evento real e não estavam preparados à altura para uma situação de crise. Disparos em excesso, alguns clientes baleados, e apenas uns dois tiros me atingiriam: um de raspão no braço e outro no abdômen, próximo à bacia, onde o projétil ricochetearia e perfuraria o intestino além de lesionar uma artéria. Eu morreria antes mesmo de chegar ao hospital.

Seriam momentos cruciais. Por que preocupar-se, entretanto, se tudo havia sido medido e calculado durante meses de preparação e visitas furtivas à agência? Quantidade de guardas, de funcionários, de câmeras, o tempo despendido desde a entrada até a saída, inclusive o necessário para o saque, as características dos caixas, pontos fracos e fortes. Tudo. Todas as possibilidades estavam mapeadas, inclusive as piores. Todas as jogadas possíveis e as minhas reações. Nada havia escapado. Ou não?

O medo envenena. Afastei essa dúvida ao passar por outros clientes que transitavam pra lá e para cá, e cumprimentei o guarda, quando finalmente atingi o acesso ao salão com os caixas eletrônicos. Girando na porta, alcancei o átrio cada vez mais movimentado. “Obrigado, irmão. Bom trabalho!”. O homem correspondeu minha saudação sem me dar muita atenção e também isso foi muito bom. Afinal, o que não é visto, não é lembrado.

Segui com passadas vigorosas e firmes para a saída, embarafustando-me sob pesadas e grossas gotas de chuva. Alguns ambulantes negociavam sombrinhas, enquanto algumas pessoas tentavam abrigar-se sob as marquises e tantas outras rendiam-se às águas. O frenesi das vendas de fim de ano misturava toda essa gente como num ir e vir de ondas na praia, a espuma de gente se formando na arrebentação de pessoas na porta das lojas e eu tentava vencer as vagas para chegar finalmente à rua.

 

Deixei que meu boné caísse no meio daquilo tudo, desviando de alguns carros que cruzavam a avenida, impacientes com os pedestres que surgiam intransigentes e repentinamente. Havia uma parada de coletivos exatamente do outro lado, em que um quase largava, sempre há. Na verdade, o plano foi elaborado contando com essa possibilidade, que era de extrema importância para o audacioso plano. Corri e bati com a mão aberta na lateral, para que o motorista interrompesse o movimento e eu pudesse embarcar. Subi a escada célere e paguei ao cobrador, agradecendo ofegante e seguindo para um assento, ato contínuo. O ônibus estava relativamente cheio, apesar do movimento superior dos bairros para o centro, naquele horário. A maioria dos passageiros composta por idosos, donas de casa e crianças e adolescentes retornando das aulas. Era o nosso pequeno caos urbano diário e sem fim.

Em suma, o mundo sempre foi caótico. Viver é uma eterna tentativa de se estabelecer harmonia dentro de um caos de infinitas possibilidades. Aliás, é este o cerne de nossa angústia – e também da felicidade: a possibilidade. A imaginação é uma artesã da possibilidade, modelando nossos conflitos internos, nos impressionando com as mais variáveis perspectivas de alegria e sofrimento, revivendo tormentos do passado, projetando medos inexistentes ou sucessos extraordinários.

Felizmente, também é essa imprevisibilidade o que torna tudo tão excepcional. Enquanto a possibilidade é tão somente uma possibilidade, ainda é dominada pelas rédeas da razão, mas quando se torna uma suspeita, transformando-a numa realidade concreta, eis então um cavalo arredio e quase impossível de controlar. Difícil manter-se estável sobre tão soberbo rocinante.

A chuva batia nos vidros com força e os passageiros fechavam as janelas para se proteger dos pingos, abafando o ar interior e embaçando as lâminas translúcidas. Caos. Um pequeno caos urbano diário e sem fim. As pessoas ao lado de fora tentavam em vão abrigar-se, à medida que o volume da água aumentava, numa confusão generalizada, mas tão fácil de prever. Os homens, de fato, parecem preferir viver à sombra do inevitável, projetando sua vida pelas variáveis do acaso, distanciam-se da razão e caminham a locé. Por isso, prova a ciência e confirma a história, que aqueles que dominam a ideia do que é fortuito tem poder.

Um uivo estridente se aproximava com velocidade e senti o corpo estremecer. A viatura policial gritava com as luzes giroscópicas, num desvario, emparelhando ao ônibus, ziguezagueando e dando arranques, disparando em ultrapassagens no trânsito complicado da Alberto Braune, os homens com armas transbordando pelas janelas, fazendo sinais para os carros da frente. Era óbvio que, a uma altura dessas, Cristina havia sucumbido ao pavor e desespero, e denunciado o assalto. Ela não teve chance. O homem ameaçara sua pobre mãe, indefesa e feita refém por sujeitos sem escrúpulos. “Como era o tal assaltante? Usava arma? Estava sozinho?” Ela não sabia dizer ao certo, estava nervosa e foi proibida de olhar em seu rosto. Aparentava ter por volta de quarenta anos, estatura mediana, usava um óculos de lentes retangulares, aros grossos, boné preto, tinha a barba por fazer. Barba? Não tinha certeza. Certo é que vestia-se com um casaco de moletom também preto (ou era azul escuro?), mochila jeans à tiracolo e não se tratava de um reles marginal, inculto e tosco, de atitudes vulgares. Era, antes de tudo, um indivíduo hábil com as palavras, de modestos movimentos, espírito tranquilo, em nenhum momento se excedeu. Se possuía alguma arma, não foi possível ver, não tendo feito uso de outro subterfúgio que a preservação da segurança de sua mãe para obter o que queria. Afirmou ter um comparsa sentado nas longarinas… “Eu… eu estava nervosa… não tenho certeza”, repetia abatida e aos prantos, entre soluços sofridos. “Não consigo falar com minha mãe! Minha mãe! Ela está bem? Por favor, salvem minha mãe!”

O ônibus fez mais uma parada, numa freada brusca e inesperada, apesar de não haver condições de seguir com maior velocidade em tais condições, não demorando mais que dois minutos para o ingresso de passageiros. Uma senhora entrou puxando uma garotinha pelo braço grosseiramente, em meio a sacolas de mercado e uma sombrinha colorida e encharcada. A menina usava uma capa de chuva transparente sobre um vestidinho amarelo com estampas de flores, botas de borracha azuis, uma boneca enxovalhada nas mãos. Encarou-me com os olhos marejados, os lábios tremendo ao conter o choro. Sorri e ela juntou os dentes sem muita expressão, os olhos ainda tristes, o rosto marcado pela mágoa. Franziu a boca novamente, ao ser arrastada para o centro do ônibus, acossada pela mãe em esbregues impacientes. Expirei o ar melancolicamente e retirei o casaco de moletom, deixando-o dobrado dissimuladamente sob o assento. O próximo ponto de embarque era após uma acentuada curva à direita, na Rua Duque de Caxias, competindo com pedestres que invadiam inadvertidamente a via, forçando a travessia. O coletivo arrancou quando o semáforo sinalizou verde, virando lentamente na conversão fechada e concorrida, era indispensável ser breve e ainda mais cauteloso. Num salto, levantei-me, misturando-me aos outros passageiros, de maneira conveniente.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.  

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