Perdido - A fiadora


Boa tarde! – respondeu-me a moça, sem dirigir-me o olhar, num sorriso agradável. Na mesa, além do teclado e algumas canetas do banco, post its coloridos, blocos de papéis e clipes, além de uma foto de família. As unhas, bem feitas, tinham um tom marsala, contribuindo para evidenciar ainda mais a palidez das mãos. Ostentava um anel na destra, cujo aro se formava feito um entrelaçamento de raízes e culminava numa pedra central ovalada de cor esmeralda.

Como vai Dona Norma? – perguntei simpático, também num sorriso, e a mulher ergueu de súbito o olhar. Outro trovão. Choveria em breve.

Conhece minha mãe? – retrucou, com o semblante intrigado, abandonando os papéis que guardava mecanicamente nos escaninhos de acrílico. A baia ao lado estava inconvenientemente ocupada, o que poderia ser, de fato, um imbróglio para meus planos, caso estivesse ocupada por Rute. Providencialmente, era Eduardo quem atendia a um rapaz com um malote de empresa, diversas contas a serem pagas. A ciência já provou e a história confirmou que a estrutura do cérebro masculino, o modo como os neurônios fazem conexões e a quantidade de hormônios que agem no órgão, afetam diretamente a capacidade de atenção multifocal dos homens. E isso era uma grande vantagem.

Claro! Adoro sua mãe. Até porque ela está me dando uma força incrível. – respondi na mesma medida, pegando meu bloco de notas no bolso. – Me empresta a caneta?

É mesmo? – prosseguiu a tertúlia, deslizando o utensílio no tampo branco. Picava-lhe a curiosidade, mas eu precisava ir com extrema calma, seguindo o roteiro de maneira escrupulosa para alcançar o efeito desejado. Ajeitei o óculos e, baixando o olhar, risquei mais um item da lista; devolvi a caneta, fechei o bloco e o guardei novamente no bolso.

Sim, sim. Ela é minha fiadora. – respondi, naturalmente, numa conversa fortuita e prosaica. As câmeras do sistema de segurança, posicionadas em pontos estratégicos, não captariam, portanto, nada de anormal ou fora do comum.

Desculpe, mas não entendi. – disse ela, estacando de súbito.

Serei breve e claro. Esvazie sua gaveta e passe tudo para mim, com sorrisos discretos e sem olhar em meu rosto. Tenho dois amigos com Dona Norma neste exato momento e a menos que você faça exatamente o que eu mandar, ela vai continuar em perfeita segurança. Não tente nada, não olhe para o guarda, não acione alarmes, nada. Tenho um comparsa sentado nas longarinas que ao menor sinal de erro, ordenará aos outros uma retaliação, em plena Augusta Daube. É não é isso que eu quero e nem você. Por favor, responda que entendeu com um sorriso, sem me olhar.


A mulher fungou e fez exatamente como determinado, pegando os maços com notas de cem e cinquenta, tremendo por medo e nervosismo. Eu recolhi o dinheiro e coloquei dentro do envelope pardo na mochila, também sorrindo e com movimentos lentos e tranquilos. Ela ameaçou levantar os olhos, mas eu a detive com um estalar de língua e ela se conteve.

Acho que não consigo… – choramingava a mulher, enquanto fingia digitar algo na máquina, com os olhos marejando, os músculos da face tremeleando.

Está acontecendo alguma coisa, Cristina? – perguntou Eduardo, para minha surpresa. Teria ele percebido algo ou ouvido a conversa, mesmo que um diminuto fragmento fora de contexto, interpretando devidamente um laivo de ameaça?

Não… não. Está tudo bem. – respondeu Cristina, com o semblante perturbado. – É minha enxaqueca, atacou de repente. Você poderia pegar um copo d’água para mim? – concluiu com requintes de representação teatral.

Claro, claro… – disse ele, pedindo desculpas num olhar longânime para seu cliente, que consentiu num acordo tácito e igualmente mudo. Eduardo se afastava e o garoto passou a dedilhar as contas. Eu precisava ser ainda mais cauteloso, talvez estivesse dissimulando para ouvir nossa conversa.

Muito bem… – murmurei num elogio. Cristina juntava os maços, visivelmente abalada, e eu os recolhia com brevidade, guardando o dinheiro de imediato na mochila. Um homem passou caminhando por trás de mim, na direção do caixa de Cacá, após o mostrador digital chamar seu número, num bipe agudo e insistente.

Estou nervosa… – desculpou-se a mulher, erguendo aparvalhada os óculos, com a ponta do indicador. Temi ser uma espécie de código previamente combinado, mas preferi afastar da mente essa sombra. As dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar por simples medo de arriscar.

Sua água… – disse Eduardo ao retornar. Olhou-me por breves segundos e senti um calafrio. Havia sido desmascarado? Seria possível, porém, confesso que a reação da minha “cúmplice” (por força das circunstâncias) foi surpreendente e inesperada, e me tranquilizava, de certa maneira.

Cristina, juveníssima técnica bancária, concursada há quatro anos, estava mergulhada numa sufocante atmosfera de medo e fazia um grande esforço a fim de se controlar. A pressão, tão dilacerante e contundente, tolhia seu raciocínio, suas ações era determinadas somente pelo instinto de sobrevivência e proteção, e isto poderia ser êmbolo tanto para as reações perspicazes como para as mais estúpidas. O modo de conduzir a situação, então, era extremamente importante para o sucesso do plano: deveria ser meticuloso e preciso, como o peso dos dedos no disco de um cofre mecânico, movimentos estanques aos retilíneos limites da prudência.

Sentindo-se impotente e acossada, agradeceu e sorveu a água quase que de um gole só, tremendo levemente o copo na mão. Apoiou o vasilhame de plástico sobre o tampo e, ato contínuo, conferiu novamente os documentos no escaninho, num embuste, até que o seu colega voltasse a atender. Suspirei.

Por favor, não faça nada à minha mãe… – balbuciou, sem me encarar, obedientemente, fungando outra vez. Percebi seus olhos vermelhos e marejados por trás da lente e, ainda que fizesse muito esforço para não parecer tão frágil, uma lágrima escorreu incontinente em sua face.

Sua mãe está segura, por enquanto. Ela deve ter muito orgulho de você. – comentei com a firmeza necessária, e continuei. – Agora, dê-me um papel qualquer como se fosse um recibo bancário. Depois disso, vou agradecer e sair normalmente. Você aguarda dois minutos e chama o próximo cliente. Simples assim. Você entendeu?

Cristina assentiu, pávida, com um discreto movimento de cabeça. Pegou um sulfite quadrado num bloco de rascunho e o passou para mim, acompanhado de um “prontinho” , sorrindo cabisbaixa, em seu último e forçoso ato de tão abjeta peça. Agradeci e afastei-me, caminhando normalmente e correndo o olhar discretamente pelo salão e as pessoas sentadas. A fim de garantir credibilidade à minha fala, meneei a cabeça na direção de um homem qualquer sentado nas longarinas e ele retribuiu automaticamente, fazendo sua participação especial no auto daquela composição dramática, sem que ao menos soubesse.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua...  

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.  

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