Perdido - É assim que deve ser

 

Atravessei de modo resoluto os umbrais do prédio, caminhando firme e cadenciadamente, conquanto concorresse covardemente a alguns que se amontoavam indecisos na entrada do saguão, diante de um leque de possibilidades, tetanizados pela insegurança do porvir. É esta imprevisibilidade da vida, contudo, o que a torna tão especial, enfim, a única constante é a mudança. Nomes mudam, cores mudam, paisagens mudam. Casarões são demolidos para outros serem construídos e igualmente reduzidos a pó, trens escorregam sobre trilhos para até nunca mais… vão-se os dedos e também os anéis. Tudo muda o tempo todo, essa é a lei. Para o que é inevitável, então, não há réplica e, por mais que a essência das coisas nos pareça estática, às vezes pesada e asfixiante, são elas um universo único e em constante evolução e mudança. É assim que deve ser.

Embora fosse o horário de maior movimento, posto que a agência havia acabado de ser franqueada aos clientes, a fila que se formava indócil pela calçada da Alberto Braune, bem antes do expediente, havia milagrosamente se extinguido. A avenida que homenageia o não unânime farmacêutico é a principal artéria da cidade, com acessibilidade à algumas vias secundárias, e emoldurada por alguns prédios que datam da década de 1930. Intensa à luz do dia, é onde se localiza a sede da Prefeitura Municipal, a antiga rodoviária, várias lojas, farmácias, supermercados e agências bancárias, tendo como limites visuais a magnífica Igreja Matriz de São João Batista ao norte e a Pedra do Imperador ao sul, supremos magnetos da atenção.

O céu era um teto baixo de pesadas nuvens. Caminhei até a porta giratória, observando discretamente a mocinha de colete azul auxiliar um senhor idoso na máquina de autoatendimento. Os documentos eram retirados com dificuldade do bolso, junto a um bolo de papéis amarrotados. Outros tantos aguardavam sua vez nos aparelhos em funcionamento, a fim de realizar depósitos, saques e consultas. Tudo aquilo era corriqueiro e banal e, longe de mim querer ser alguém que fugisse ao comportamento comum. O que escapa ao clichê se destaca e chama a atenção, mesmo que seja tão ridiculamente prosaico.


Ajeitei a mochila nas costas, o boné, e girei a porta, acionando o alarme do detector de metais, como previsto. “O senhor pode depositar os objetos de metal na gaveta?”, orientou mecanicamente o diligente guarda. Eram três, ao todo: um na porta giratória, outro na gaveta, e um mais ao fundo, escondido numa pequena guarita, armados de revólveres calibre 38, municiados, além de projéteis sobressalentes dispostos no coldre. Respondi que sim educadamente e depositei o celular, o relógio, e o óculos, para finalmente entrar. O alarme tocou novamente. “O senhor tem alguma coisa na mochila, algum guarda chuva, algo de metal?”, perguntou apoiando as mãos na cintura feito um caubói. “Amigo, minha mochila está vazia, veja. Eu tenho um implante dentário...”, respondi, mostrando a mochila aberta. O homem acenou a cabeça e apertando um botão, liberou a porta para que ela girasse. Agradeci e, ato contínuo, recolhi meus objetos, seguindo pela escada de granito até o segundo andar, onde ficavam os caixas. Retirei minha senha e sentei: haviam dezesseis números à minha frente, segundo o numerador digital na parede.

Naquele piso também havia um segurança, num canto próximo a longarinas um tanto maltratadas pelo uso. Os caixas eram cinco, e nem sempre atendiam ao mesmo tempo, havendo, inclusive, baias desocupadas entre eles. A média de tempo dos atendimentos era de cerca de sete minutos por cliente, alguns sendo demasiadamente demorados e outros incrivelmente breves. O natural era que os morosos chamassem mais atenção, tendo em vista que o atendido era uma posição privilegiada, ansiada e invejada por todos aqueles com os números nas mãos. Então, ser breve era conveniente, quase como ser invisível, inalcançável, indescritível. Ninguém se lembra de quem foi rápido na fila do banco.

Boa tarde! – cumprimentei Cristina, no momento em que reboava um repentino trovão, anunciando a inevitável e já corriqueira bátega d’água. O tempo carregado se arrastava durante dias, perpetuando-se exageradamente, ainda que para um mês de dezembro. Cristina era a jovem mulher formada em Ciências Contábeis, de cabelos encaracolados, tingido de luzes, os olhos pequenos e azuis, um grau e meio de astigmatismo. Morava com a mãe viúva, na Chácara do Paraíso.

Além dela, havia o Eduardo, um marombado com estilo hippie, barba por fazer, a testa grande dissimulada pelo corte moderno, divorciado, pai de um casal de filhos (de cinco e dois anos); o veterano José Carlos, Cacá, casado há vinte e dois anos, amasiado há sete, uma filha única ingressando na faculdade de Direito, barba grisalha e espessa, nariz adunco e forte, reluzente calva, olhos vivos e prescrutadores. Havia também, é claro, a Rute Quintella, cuja caneta possuía a tampa marcada por mordida, havia trabalhado nos áureos tempos da famosa Construtora Engetec, do ex-prefeito. Todos, enfim, meticulosamente estudados em características, horários, hábitos e personalidades, durante prolíficos meses. Cristina era minha preferida: jovem, simpática e cheirosa. A mais vulnerável emocionalmente.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua...

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência. 

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Comentários

  1. Estou acompanhando com grande interesse.
    Acho bom os guardas do banco ficarem de olho nesse cara.
    Bem intencionado ele não está!

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  2. Muito obrigado pelo comentário! O episódio 2 vai ao ar no dia 04 de maio! Não perca!

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