Perdido - Sala de Espera


A sala de espera, bastante iluminada, contava com a luz do grande janelão em vidro temperado, além de spots e lustres bem posicionados. Era uma ambiente compacto, com longarinas azuis extremamente confortáveis. “Salve, Rainha, mãe de misericórdia...”. A cortina em persiana branca, semiaberta, causava um efeito de tranquilidade e organização, assim como os tons claros das paredes davam a sensação de amplitude. Havia duas poltronas individuais, uma em cada extremo e na parede adjacente a entrada do consultório, havia uma estante em fibras de média densidade, com revistas novas sobre decoração e automobilismo. “A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva”. Quase não há revistas novas em salas de espera de consultórios médicos. Tampouco relógios de parede. Relógios de parede deixam os pacientes ansiosos.

Há, porém, o silêncio – e um incômodo cheiro de limpeza, esterilidade… algo que nos fazia lembrar que estamos num ambiente médico. Quem vai à igreja busca a remissão dos pecados, quem vai ao médico, solução para suas dores. É plural e de nada adianta paletas de cores claras, luzes naturais, louvores, jarros de plantas, estantes de revistas… as dores e os pecados, eles ainda estão lá.

Eia, pois, advogada nossa...” . Ninguém aguardava comigo na sala de espera e não cheguei a presenciar o cliente anterior sair. Conferi o relógio de pulso prata, com marcadores de hora, dia do mês e da semana. Havia dez minutos que eu chegara, três meses e meio de consultas e exames médicos, cerca de seis meses do aparecimento dos primeiros sintomas: episódios de tontura e desmaio, além de repentinos e pontuais apagões em que não conseguia encontrar as palavras certas para definir um simples objeto, não importava o quanto eu tentasse e isso, isso especificamente foi muito angustiante.

Dr. Whaldhelm, renomado neurocirurgião e membro do Rotary Club, arroz de festa da high society friburguense, finalmente abriu a porta, com algumas pastas de exames nas mãos, o sorriso simpático emoldurado por um cavanhaque grisalho e bem cuidado. “E, depois deste desterro...”.

Como vai? Sente-se, por favor. – disse o médico com eloquência, franqueando a passagem e indicando a cadeira estofada com a mão espalmada, ao fazer a volta em sua mesa.

Boa tarde… – cumprimentei ao sentar-me, apoiando os antebraços no apoio e cruzando as pernas na altura dos tornozelos.

Você quer alguma coisa? Tem água e café na recepção. Posso providenciar… – disse solícito, deixando os exames no tampo da mesa e ajeitando os óculos de aro redondo, com o indicador na alça do nariz.

Não, não há necessidade. – respondi seriamente, baixando brevemente o olhar e meneando a cabeça negativamente. Sendo bem franco, não me dei conta da presença de alguma mesinha com água e café.

Peço desculpas pela demora. Fiquei um tempo repassando seus exames… como está se sentindo hoje? – desculpou-se recostando na cadeira e esticando as pernas, apontando para as pastas de capa branca com um movimento do queixo.

Perfeitamente bem. – respondi-lhe erguendo os olhos, mentindo descaradamente. A cabeça doía no topo, irradiando para o lado direito e por cima do olho.

Hum, que ótimo. – disse ele, com um breve sorriso de canto de boca. Dr. Whaldhelm era experiente o suficiente para realizar diagnósticos difíceis e reconhecer mentiras. Passou a mão na calva reluzente e suspirou.

Por favor, doutor. Vamos logo ao assunto. – intimei-o impaciente. Não devia ser nada demais, mas protelar a palestra causava uma apreensão desnecessária e fastidiosa.

Oh, sim. Pensei que o senhor viesse acompanhado. – comentou en passant, parecendo desviar novamente o foco da conversa, como se estivesse comendo pelas beiradas. – A esposa, talvez. Um irmão. – concluiu pensativo.

Não vejo porquê. Ninguém sabe que eu o procurei. – respondi, pigarreando. – Além do mais, foram só algumas dores de cabeça, algumas falhas de memória… uns poucos desmaios. Li que até falta de vitamina D causa isso, não é?

Sim, sim. – disse empertigando-se, ajeitando o colarinho do jaleco e apoiando os braços no tampo da mesa. Pegou uma caneta entre várias, de uma caixinha plástica retangular preta com a logomarca de um laboratório de remédios. – Mas eu preciso dizer ao senhor que os resultados não são tão bons assim. Aliás, são bastante preocupantes. Tem certeza de que não quer chamar alguém?

Ora, doutor…

Pois bem. O que o senhor tem é um glioma de alto grau. É um tipo de tumor de rápido crescimento que afeta suas funções neurológicas, daí os problemas com a memória, as tonturas e dores de cabeça. Sinto muito. – explicou com uma expressão ausente, numa claridade mortiça e lúgubre, rabiscando qualquer coisa no bloco de receituário.

Err… devo admitir que não esperava algo assim tão grave. Mas… mas… com os exames que já fiz, já é possível planejar uma cirurgia? – perguntei de súbito, sentindo o corpo estremecer.

 


Desculpe, talvez eu não tenha me feito entender claramente. O glioma que o senhor tem é inoperável, sem possibilidade de tratamento com radio ou quimioterapia. Mas é possível a administração de medicamentos para reduzir a dor com a evolução da doença. – respondeu secamente e encarando-me de maneira firme, com o cenho franzido, como se esperasse algum tipo de atitude ou reação.

Então, o senhor quer dizer que… – balbuciei, sentindo os olhos arderem. Encarei-o em resposta, reconhecendo a estática do seu computador ligado no intervalo de uma quase pergunta.

Não sei o que o senhor pensou, mas… seis meses. Um ano, no máximo. – disse de maneira assertiva e técnica. Médicos são melhores que arquitetos e advogadas: não erram prazos. – O senhor está se sentindo bem?

Oh, sim. Sim. – respondi, desviando o olhar. A sala do Dr. Whaldhelm tinha uma pequena estante em mogno, com diversos livros e uma réplica de uma cabeça aberta num corte transversal, exibindo o cérebro rosado, globos oculares e demais estruturas. Comecei a conversar distraído e desconcertado, os olhos marejando. “Err… eu só não esperava.”

O nó na garganta surgiu, subitamente, como se a traqueia se comprimisse a cada palavra do médico, a voz ecoando ao fundo, distante e incidental, como o chiado de um rádio mal sintonizado. Meus olhos ardiam dentro das pálpebras fechadas, as mãos esfriaram, as pontas dos dedos gelando e enrijecendo, as pernas paralisando, o corpo inteiro imóvel, como os restos secos de uma árvore morta. “Seis meses, um ano, no máximo” . Médicos não erram prazos. Meus lábios tremeram e a mente esvaziou-se de qualquer pensamento.

Está tudo bem? – perguntou preocupadamente, mais como um protocolo a ser seguido do que preocupação propriamente dita, o volume da voz surgindo novamente em meus ouvidos no tom natural, junto a um zumbido agudo que se distanciava na mesma medida.

Sim, está tudo bem. – respondi-lhe, tornando a encará-lo. Eu precisava sair dali o quanto antes. Imediatamente.

Se quiser, posso indicar uma amiga oncologista que poderá assisti-lo muito bem nesse momento. – disse baixando o olhar para o bloco de receituário e anotando o que parecia ser o nome da médica. Levantei-me de uma vez só, sustentando o peso com as mãos nos apoios de braço da cadeia em estofado bordô.

Não há necessidade. Agradeço pela atenção. – esgrimi girando a maçaneta da porta de madeira em verniz imbuia, abandonando-a entreaberta. Atravessei a sala de espera em três míseros passos e alcancei a porta de vidro temperado, girando a chave e abrindo-o com firmeza. A voz grave de Dr. Whaldhelm tornava-se distante novamente.

Não vai querer os seus exames? O seus exames! Esqueceu os seus exames!

De que valiam meus exames agora? Não valiam nada. O diagnóstico estava feito: seis meses de vida, um ano com muitíssima sorte. Deus, eu não estava preparado para isso. Para um tumor grave e tratável, quem sabe, mas para o desengano, o atestado de morte… o fim da linha. Quem está?

Pensei em contar tudo, reunir a todos… mas o que eu poderia dizer? Pedir que se sentassem, que não me interrompessem, oferecer café e simplesmente despedir-me? “Só me resta agora dizer adeus e depois o meu caminho seguir. O meu coração aqui vou deixar, não ligue se acaso eu chorar… mas agora adeus”.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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Comentários

  1. Uau George!
    Profundo ...

    Reportei-me a 1973, quando o médico chamou meu pai e liberou minha mãe para ter alta do São Lucas, àquele tempo no Paissandu ...

    Os médicos são precisos!

    Há 3 meses mamãe havia iniciado um processo de dores ...
    Exames ... remédios ... internação ...

    O Dr. disse:
    - Seu Braga ... são 7 dias ...
    o tumor canceroso no fígado ...

    Todos à volta do seu leito, regado ao que havia de melhor para aliviar seu sofrimento ...

    ***********************
    Dali a 7 dias, às 7 h da manhã, a nossa valente e inesquecível mamãe partiu ...
    Saudades 😢

    (Perdoem a liberdade de publicar aqui um desabafo pessoal)

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  2. Nós não estamos preparados para receber notícias ruins isso nos mostra que a vida é uma frágil como fio de cabelo que de nada vale a soberba e arrogância.

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