Acordei por volta das sete horas. À contragosto, é verdade. Tomei um
banho bem quente - daqueles em que a pele fica avermelhada - escovei os
cabelos, pus um vestido chemisier curto negro e mocassins pretos, e fui
tomar café. Meus pais já tinham saído para trabalhar e nem saberiam se
eu fosse à escola ou não. Acho que não se importavam muito com isso,
aliás. Como filha única, sempre tive tudo que quis, nenhuma de minhas
vontades era contrariada. Se isso foi bom? Não sei. Acho que sim, mas
faltava alguma coisa.
Deixei a louça do café na mesa e fui escovar os dentes. Depois
passei um batom bem vermelho e brilhante, e maquiagem nos olhos. Queria
me sentir bem sensual neste dia. Não que eu não me sentisse assim
habitualmente, mas esse dia seria diferente.
Olhei para minha bolsa com os cadernos. Não, eu não os levaria em
meu passeio. E para ser sincera, não notariam minha falta na classe.
Sou bonita, sensual, interessante, mas sou daquele tipo de pessoas que
passam despercebidas na multidão, e eu não me importo com isso. É,
talvez eu me importe um pouco.
Saí de casa sem trancá-la e fui caminhando calmamente rumo ao
centro da cidade. No caminho, algumas pessoas corriam, fazendo
exercícios, outras liam jornais com as barbaridades mais macabras de
todos os tempos do último dia, algumas bebiam nos bares, outras saíam
benzendo-se de igrejas e outras tantas sorriam, gargalhavam.
Senti vontade de gritar: Estão rindo de quê?, mas não gritei. O
mundo está repleto de guerras, assassinatos, fome e doenças, numa
dimensão muito maior do que se pode noticiar. Eu não riria por isso. Tem
gente morrendo aos montes nos hospitais e sabe, ninguém parece se
compadecer delas. Tem um mendigo logo ali na calçada e as pessoas passa
rindo e conversando por ele, como se ele fosse uma pedra, ou árvore, ou
qualquer objeto inanimado. Não estão nem aí para ele, acham que ele
escolheu ficar na sujeira, que tudo faz parte de um plano maquiavélico
para usurpar o dinheiro daqueles que tanto batalharam para tê-lo. Isso é
um absurdo! - gritei para mim mesma, e minha voz não deu um passo além
de meus dentes.
Tive vontade de chorar. Atravessei a rua abarrotada de carros que
buzinavam impacientes e irritados com os outros carros que não se
moviam atrás do sinal verde. A buzina é um instrumento mágico que faz
desaparecer da face da Terra todo meio de transporte que empacar no
trânsito. Mas a desse pessoal aí deve estar com defeito, coitados. Do
outro lado da rua havia um casal de namorados, felizes, que se beijavam e
também riam. Porque estão felizes? Eu não vejo motivo nenhum para isso.
Na primeira oportunidade que ele tiver, queridinha, ele vai te trair.
Foi assim comigo, eles são todos assim.
Um dia eu acreditei em felicidade, no amor. Meu primeiro namorado
eu conheci na escola, assim como os outros. Eu queria carinho, eu
queria ser amada, mas rapidamente percebi que ele não estava nem aí para
minha conversa interessante e meus sentimentos. Me traiu com uma garota
de minha turma, uma vagabundinha que deixava ele por as mãos onde eu
não deixava. Tudo bem, ele não presta. Os outros também não. O segundo
não me traiu - até onde eu sei - mas me largou porque eu não trepei com
ele. Eu não estava preparada para isso... Trepar. Que coisa feia, não é
mesmo? Mas é assim. Não se trata de fazer amor, carinho, aconchego. É
algo puramente carnal, desprovido de sentimentos. Instinto... Foi então
que eu decidi trepar, pronta ou não. Trepei com um, dois, três, até que
encontrei alguém que valia à pena. Mas ele também me traiu, mesmo eu lhe
dando o melhor sexo do mundo, e sendo a namorada mais carinhosa e
submissa que podia ser. Ele não tinha necessidade disso, pelo menos
racional. Não mesmo. Talvez seja o código genético... Mas eu não quero
saber. Desisti deles. Desisti de tudo. A vida é um trem que passa rápido
e não pára para ninguém descer. Então resolvi pular...
Atravessei outra rua, já no centro da cidade e entrei em um
prédio comercial bonito, bem decorado, que devia ter uns quinze andares.
As pessoas entravam e saíam como em um movimento automático, e eu, no
meio deles, era apenas mais uma.
Não foi difícil chegar ao último andar e ter acesso à cobertura,
que não passava de uma laje com restos de material de construção e
caixas de algumas lojas do prédio, expostas ao tempo. Aproximei-me do
batente e olhei para baixo. A confusão de gente e carros não se
alterava. Desabotoei meu vestido e deixei-o cair, e sentir o vento bater
forte em meus seios foi uma sensação gostosa. Os seios dos quais eu
sempre me orgulhei e de que nada me serviram.
Dei outra olhada para baixo, e um passo precipitando-me no abismo
vertiginoso da morte. Estava numa queda sem volta, em alta velocidade,
mas curiosamente, tudo parecia estar em câmera lenta. Vi os pombos
voando espantados comigo, as pessoas nos escritórios dos outros prédios.
Algumas correndo, outras nos bares... Algumas lendo jornais, outras
saindo de igrejas, casais de namorados felizes, gente sorrindo... Tudo
parecia perfeito, e apenas eu destoava disso tudo.
As lágrimas brotaram e embaçaram um pouco meus olhos. Como eu
queria ser feliz como aquelas pessoas lá embaixo! Como eu queria me amar
a ponto de me exercitar e cuidar de mim e do meu corpo! Ler notícias
ruins nos jornais, e ainda assim encontrar motivos e força de vontade
para mudar tudo! Me divertir com amigos no bar e celebrar as coisas boas
da vida. Sorrir! Eu queria sorrir. Queria conversar com Deus, como
aquelas pessoas lá embaixo fazem todos os dias. E eu queria ter filhos, e
ensinar-lhes tudo isso... Foi nesse momento que vi minha mãe,
caminhando distraída na calçada. Oh não! Ela não merece ver isso! Meu
coração batia mais forte e meus músculos retesaram.
Fiz menção de olhar para cima, mas o vento me impedia. O chão já
estava bem próximo e as pessoas me olhavam assustadas, apontando o corpo
nu que caía do céu, sob a forma de um protesto contra o mundo
materialista, apegado ao sexo e ao dinheiro. Eu estava arrependida. A
vida é muito preciosa para terminar desse jeito. Mas não havia chance
para desistir, era tarde demais para mim...
Fechei os olhos aguardando o impacto. Senti frio, muito frio e
abri os olhos novamente. Estava nua sobre a cama, o travesseiro molhado
pelos meus cabelos e as lágrimas em que eu havia me debulhado até
adormecer. Foi uma noite terrível. Meu namorado terminou comigo ontem, e
desde então, sei apenas chorar. Tive vontade de morrer!
Levantei-me cedo, tomei um banho - onde meu pranto era lavado
pela água quente - e deitei-me aqui, chorando sem parar. Mas agora que
acordei sinto-me bem melhor. Eu o amo, mas não vou me destruir por não
me querer mais. Eu não mereço isso, assim como aqueles que me amam de
verdade. O que realmente importa não são os problemas da vida, e sim a
maneira de lidar com eles. Aliás, ela é muito preciosa para ser
desperdiçada de qualquer jeito, e não é tarde demais para um recomeço.
Nunca será tarde demais.
George dos Santos Pacheco
* Extraído do livro Tarde demais para Suzanne, Editora Clube de Autores – Nova Friburgo, 2016
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