Uma cisma qualquer

 


"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa."
Guimarães Rosa

Caminhou com passos firmes em direção ao móvel de madeira, encerado, polido e oportunamente organizado no canto mais silencioso e reservado do lugar. Ajoelhando-se com reverência, entrelaçou os dedos das mãos, apoiando a testa sobre os nós. Apesar de fazê-lo com frequência modular, tratava-se de algo tão sufocante quanto uma grande pedra sobre o peito – e inconvenientemente pertinaz. Não podia, não conseguia esperar mais. Quem poderia?

Ergueu os olhos para a grelha de madeira à frente, suspirou e prosseguiu, resignado.

Padre, perdoa-me, porque pequei... – murmurou num tom melancólico. O prior reconheceu-lhe. O homem de hoje era o mesmo de ontem, o mesmo de amanhã, o mesmo de outrora. Mudam apenas suas vestes.

Pode falar, meu filho, teu servo escuta. – respondeu o homem invisível. Sim. Ainda que investido de todos aqueles poderes e prerrogativas eclesiais, de fato, também ele era mortal. A solis ortu usque ad occasum...

Ah, senhor padre... eu tenho um jardim em minha casa. Há várias espécies, de todas as cores, das menores às maiores, de todos os cheiros...

Continue... instilou no intervalo de sua respiração, falseando paciência e imprimindo uma forçosa longanimidade na voz. Alguns fiéis precisavam debulhar parte de suas vidas até chegar à pontual e dolorosa falha e, embora fosse um exercício maçante, era estritamente necessário.

A flor desse jardim, entretanto, é a Impatiens walleriana, nativa das florestas tropicais do leste da África. Talvez o senhor não a reconheça pelo nome, mas de certo o fará pela alcunha. “Beijo”, “Maria-sem-vergonha”... a verdade é que cada um dá nome às coisas pelo que lhe convém.

Ah, sim, eu as conheço. Mas, enfim, o que te incomoda, meu filho? – perguntou-lhe com ansiedade, encanastrando as mãos sobre o ventre e recostando a cabeça no espaldar.

Oh, desculpe-me! Sim, sim. Acontece que um vizinho me pediu uma muda da planta. Uma. E eu dei a muda.

E o que há de mal nisso? – continuou, pigarreando, tentando dar celeridade e dissolver logo o tal enigmático imbróglio.

Sabe, senhor padre, sou um homem extremamente literal e cartesiano. Um é um, dois são dois, três são três. Quando ele me pediu uma muda, dei-lhe apenas isto: uma única e insignificante muda. – respondeu o confessor, desentrelaçando os dedos e limpando o suor que se formava sobre o lábio superior.

Mas não foi exatamente o que ele pediu? – argumentou com impaciência, cruzando os braços em seu lócus e franzindo o cenho ao virar-se de súbito para a treliça.

Sim, mas algumas pessoas usam desses eufemismos para exprimir algo, receosos de julgamentos de quem quer que seja.

E ele se ofendeu por isso?

Não tenho certeza. Mas levei um pito da minha esposa ao chegar em casa... – respondeu quase numa reflexão, um murmúrio abafado, enquanto esfregava as têmporas, cerrando brevemente os olhos.

Houve dolo?

Como assim?

Você fez de propósito, meu filho? Você quis ofendê-lo?

Ora, mas é claro que não!

Filho, se você não teve a intenção de ofender, então não houve pecado. Vá em paz, e que Deus te acompanhe.

Ora, mas é claro que houve! Até uma criança sabe disso. Eu tenho um monte daquelas flores em casa, poderia ter dado metade delas que não me faria falta. – argumentou categoricamente, encarando novamente a fina tela de madeira que o separava do clérigo. E entrelaçou as mãos outra vez, num suspiro aborrecido.

A natureza do pecado não é esta, meu jovem: é a ofensa e o dolo. Se você não quis ofender, se não houve intenção, não houve pecado. Agora, vá em paz.

Desculpe, senhor padre, mas não devo ir sem que me prescreva uma penitência. Eu posso até não ter tido intenção de magoar, mas haver magoado mesmo assim. E preciso ter esta falha expiada. – esgrimiu ao faltar-lhe o juízo.

Entendo seu ponto de vista. Neste caso, contudo, nem mesmo a certeza da ofensa você tem!

Mas eu tenho quase certeza! Não se trata de uma cisma qualquer. O jeito que ele me olhou após isso, também os demais vizinhos, minha esposa, inclusive meu chefe! Eu ofendi sim. E o pior: eventualmente cometo um desatino desses, tudo por conta dessa minha torpe condição de discernir tudo ao pé da letra!

O sacerdote cobriu o rosto com as mãos. Definitivamente, não valia a pena discutir com ele. O problema do homem é da ordem da culpa, não do pecado. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César, enfim.

Pensando bem... você está certo, meu filho. Isso, com certeza, foi pecado. – comentou, após um brevíssimo momento de hesitação.

Ah, eu sabia! – sussurrou, mas o padre pode até imaginar um sorriso no rosto do culpado.

O Senhor lhe conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz, e eu o absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Agora, reze dois Pai Nossos e seis Ave Marias. Ao chegar em casa, pegue o mesmo número de mudas e dê ao seu vizinho. Vá em paz e que Deus o abençoe.

O homem benzeu-se, sorridente e, ato contínuo, agradeceu ao pároco do outro lado da treliça. Seguiu até o banco mais próximo do altar, dobrou os joelhos e pôs-se imediatamente a rezar. “Opa, mas espere aí...” pensou, em uma súbita e surpreendente epifania – sem que a esposa ou qualquer um precisasse avisar. “E se o pecado fora pior do que o padre reconhecera? Por isso a relutância em dar-lhe a penitência?”. Oh, sim! Podia pressupor seu olhar, exatamente igual ao do vizinho, da sua esposa, do seu chefe... Não era uma cisma qualquer. “Só dois Pai Nossos e seis Ave Marias?”.

Ora. Melhor rezar pelo menos três a mais: apenas por garantia.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com





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