Sabe com quem está falando?

 

“A arrogância é o reino – sem a coroa.” (Textos judaicos)

Diz-se que o tal episódio se deu na época do apito da Ypu – e quem pertence a estas plagas sabe muito bem que isso faz é tempo. “Pra lá de quarenta anos”, garantiu o nobre confabulista, após molhar a beirada dos bigodes, já inteiramente brancos, num cristalino copo de cachaça. “Você acredita ‘isso’? Ou não?”, perguntou-me, numa gargalhada excessivamente sarcástica.

Acontece que um funcionário da empresa de águas da cidade estava realizando um reparo emergencial na confluência da Alberto Braune com a famosa Rua do Arco. Não tendo como sinalizar a obra, cercou o trabalho com os paralelos mesmo, e tome-lhe cavar buraco, debaixo de um sol de quase meio dia. Lá pelas tantas, alguém o gritou com voz indignada, lá de cima da rua (cima sim, porque o homem já estava completamente imerso na escavação).

– Ô, peão! O que você pensa que está fazendo? – perguntou o transeunte, com ares de autoridade. O funcionário nem se deu ao luxo de encará-lo, continuando com as firmes pazadas no barro amolecido. Em Friburgo, onde se cava, brota água.

– “Tô” trabalhando, ué, doutor… – respondeu ofegante, enquanto jogava mais terra para cima, quase acertando o figurão. As buzinas começaram a troar insistentes na avenida e o revoltado sujeito encolerizava-se ainda mais.

– E isso é trabalho que se preste? Olhe essa bagunça! Um monte de pedra solto aqui na rua… onde está a sinalização? Você suba aqui e resolva isso agora mesmo. – determinou o homem, com voz firme e autoritária, irritadíssimo com o pouco caso do funcionário. Uma quase inaudível voz feminina protestava, sem sucesso, contra o postulante.

– Eu não vou subir coisa nenhuma. Se o senhor está incomodado, o senhor que dê um jeito nisso. – respondeu ele, com indiferença, a respiração entrecortada. Os apelos dos carros tornavam-se mais e mais constantes, palavras de ordem os acompanhavam e inflamavam o discurso.

– Como é que é? Você sabe com quem está falando? – esbravejou, cheio de empáfia, o perturbado interlocutor. Mais protestos femininos negligenciados.

– Não sei, mas faço ideia… – respondeu o outro, abandonando a pá de qualquer maneira e aproximando-se de escadote de madeira improvisado.

– Pois, então? – insistiu o velhaco, mas o homem já se esgueirava na borda da escavação. Ergueu-se, apoiando as mãos nas coxas, e olhou em derredor. O carro da dita autoridade estava parado no cruzamento das vias, impedindo o acesso dos demais veículos; a madame segurava-lhe o braço, constrangida com o comportamento do esposo, mas ostensivamente resignada ao seu pleno arbítrio.

– E o senhor? Sabe com quem está falando? – perguntou o funcionário, em contrapartida, o rosto completamente sujo de lama, meneando o dedo em riste.

– Não… – retribuiu o homem, metido num terno preto e gravata cinza. Era um senhor de cinquenta e poucos anos, os cabelos grisalhos esticados para trás, colados na cabeça por gel brilhante.

– Ainda bem! – exclamou aliviado o funcionário, num sorriso sem-vergonha. E partiu correndo em disparada, no sentido contrário, para nunca mais se verem, autoridade e peão.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Publicado originalmente no Portal Multiplix, em 27 de setembro de 2023. Foto: Dhiógenes Hendrix

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