Perdido - Somente a dor é real

 

Avancei pelas escadas, um a um, dois a dois, três a três degraus. As pernas vacilavam, meu coração batia como se fosse explodir dentro de meu peito, tomado por uma angústia que eu jamais experimentara. Eles tinham razão, Queiroz e Emílio, eu não ajudaria em nada, pelo contrário, talvez atrapalharia. Mas, porra, doutor! Eu precisava ter certeza de que tudo acabaria. Eu precisava provar isso para Jack, para Gisele e para mim mesmo. Uma tremenda idiotice, eu sei.

Alcancei o hall do elevador entre os quartos do primeiro andar. A porta do 102 estava parcialmente aberta. Caminhei lentamente e empurrando a folha de madeira com cuidado, ingressei no quarto. Era composto por uma cama de casal e uma beliche, um grande armário de madeira e um balcão, também de madeira, que estendia-se na parede em frente às camas, no qual havia uma TV plana. Algumas bolsas estavam sobre o colchão, as roupas de cama remexidas. Queiroz estava bem à frente, caído ao chão, com um ferimento de bala no peito arfante, golfadas de sangue grosso jorravam pela boca, o olhar perdido e confuso.

Shh… fique exatamente onde está, meu filho. – disse Jack, no extremo oposto, em frente à janela, com uma arma em punho. A seus pés, uma bombona de plástico aberta, o cheiro forte e rascante se espalhando pelo ar… era gasolina.

Por favor, acalme-se... Pense bem. Você não quer realmente fazer isso… – disse erguendo os braços. Era um homem de estatura mediana, quarenta e poucos anos, talvez mais, não tenho certeza. Cabelos castanhos e ligeiramente grisalhos nas têmporas, penteados para trás, a barba por fazer no queixo proeminente. Encarava-me com olhos pequenos e misteriosos, o sorriso sarcástico e ao mesmo tempo melancólico. Lá fora, um trovão ressoou debilmente e um clarão sinistro brilhou pela janela por trás do homem e então, senti-me tomado de um mau pressentimento.

Ah, eu quero sim… – disse ele, chutando indiferente o vasilhame à sua frente e espalhando o combustível pelo piso do quarto. Havia algo em seu jeito de falar, o modo de organizar o discurso e se dirigir a mim, o vocabulário escolhido… um líder religioso? Um padre!

Eu não sei quem você é, ou porque está fazendo tudo isso… mas esqueça tudo o que aconteceu. Se você se entregar, as autoridades vão levar isso em conta. Deus… Deus levará isso em conta… – afirmei, pronunciando as palavras lentamente, tentando transmitir-lhe calma e paciência, tentando lembrar-lhe de algo que ainda estava ali, em algum lugar.

Autoridades? Deus? Você está ouvindo o que está falando? Tudo é invenção humana, meu caro. A sociedade, as leis, os conceitos, a cultura, os valores, o tempo e o destino. São ilusões. – disse em contrapartida, abaixando imprudentemente a arma, com os olhos subitamente úmidos. – Sabe, meu filho…. naquele dia, eu saí do consultório médico desesperado, o coração batendo descompassado, a respiração entrecortada… E onde estava Deus? Por que Ele não veio em meu auxílio? Eu estava sozinho. Sempre estivemos. Sem saber o que fazer, atravessei a rua em meio ao movimento dos carros, que cantavam pneus ao brecar. “Você quer morrer?”, esbravejou um homem, com meio corpo para fora da janela, balançando o punho cerrado ao alto, o ar quente do motor soprando em minhas pernas feito a baforada de um cão raivoso...

Tudo isso já passou e já não importa mais. Você precisa agora se acalmar, deixar essa arma no chão e… – afirmei, tentando ganhar tempo, aproximando-me lenta e furtivamente enquanto o distraía. O que eu desejava, em verdade, era segurá-lo pelo colarinho e esmurrar-lhe a cara, até que minha raiva passasse. Os policiais chegariam a tempo de eu não matá-lo, puxando-me pelos braços, arrebatado e ofegante, os ossos das mãos doloridos pelo espancamento. Mas ele tinha uma arma...

Não importa mais? Como assim “não importa mais”? Importa sim, meu filho. – afirmou o homem, com o olhar indignado. Balançou a cabeça negativamente e após retomar o fôlego, continuou. – Você quer morrer? Claro que não. Eu também não quero… mas… mas é isso que acontecerá. Um tumor inoperável. Seis meses, foi o que o médico disse, com sua raríssima eloquência profissional. – explicou pesaroso, os olhos marejados, fazendo um gesto com a mão para impedir qualquer réplica. – Quem sou eu para questionar os desígnios do Senhor, não é? – acrescentou num tom debochado, em afirmação, não em uma pergunta.

Retiro o que disse… sim, é evidente que importa. Desculpe. Ninguém escapa à própria dor. – voltei atrás, estrategicamente. Nem sinal dos policiais e meus recursos esgotavam-se. – Contudo, você pode terminar os seus dias em paz. Não quer ter paz? – sugeri, como uma última cartada. Eu não sabia mais o que dizer. Aquele cara era um maníaco, um louco, e nada do que eu dissesse poderia destituí-lo de suas intenções, embasadas em argumentos absurdos, mas que para ele, faziam completo sentido. Como convencer alguém que perdeu a fé?

Mas eu estou em paz. – respondeu prontamente e num triste sorriso, a voz tomada por um embargo incontrolável. – Ninguém escapa à própria dor, você disse. Tem razão! Naquele dia, embora tomado pela dor, percebi que eu não morreria em seis meses: eu possuía seis meses de vida – e as duas coisas são matérias bem distintas uma da outra, meu filho... – concluiu fungando, aparentando distância e indiferença. Senti o rosto ruborizar e os músculos enrijecerem. Aquele filho da puta… aquele filho de uma puta, além de louco, era cínico e debochado.

Isso não justifica nem faz sentido com o que fez. Você… você matou pessoas. Como você pode falar da vida e da morte, seu desgraçado! – interrompi-o, afirmando entre os dentes, fechando os punhos com força e contendo a raiva a muito custo. Ameacei um passo e ele reergueu a arma, incontinenti. Outro trovão, mais forte dessa vez. As luzes piscaram e voltaram mais fracas, mergulhando-nos numa incômoda e sinistra penumbra.

Como não? Jamais me senti tão vivo. Estou livre. Agora estou livre... porque, decidi me vingar da vida, da sociedade, do tempo... do pesado jugo da religião. Do destino. Ilusões, vê? Somente a dor, a qual ninguém escapa, somente a dor é real. E não vai ser você ou qualquer um a me dizer o que fazer. Seis meses? É... não importa mais. A morte é a curva da estrada, morrer é apenas... – replicou com as lágrimas correndo pela face, sendo bruscamente interrompido por um tiro que estrugia no quarto.

Tudo foi muito rápido e confuso. Queiroz, caído ao chão em seus estertores e estranhamente encharcado em água, teve forças para fazer a pontaria e realizar um único disparo, criando uma improvável oportunidade para que eu pudesse fugir ou, estupidamente, atacar Jack e tentar desarmá-lo. É evidente que optei pela última, avançando cegamente sobre ele, enquanto outros dois clarões explodiam, sem que eu pudesse distinguir se eram relâmpagos ou tiros. As pernas cambalearam e o chão pareceu sumir abaixo de meus pés, a laje inclinando-se violentamente para a esquerda. “Deus!”, ouvi antes de tudo se tornar escuridão, penetrando nas trevas, no som de vidros espatifados e trovões que se repetiam um após a outro, até que não pudesse ver, nem ouvir mais nada.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Continua... 

Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência.

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