“A compreensão de outrem somente progredirá
com a partilha de alegrias e sofrimentos.”
Albert Einstein
Eram umas
dez e trinta da manhã de um sábado, estava de folga do trabalho e desci a pé
para comprar pão. O tempo era agradável, de céu azul e pouquíssimas nuvens,
temperatura amena. Um galo cantou em algum lugar perto dali e uma revoada de
maritacas fez um estridente rasante, no momento em que eu passava pela
portaria. Canários da terra gorjeavam, cigarras ciciavam ao calor da manhã.
Benza-o Deus!
Que dia
prazeroso e sossegado! “Bom dia!”. Palmilhando a calçada da rua Grécia,
foi possível, inclusive, cantarolar aquela música com a qual acordei na cabeça
– os anos 1980 foram muito bons em matéria musical. Já aconteceu com você?
Claro que sim. “Bichos! Saiam dos lixos!”
E embora
fosse um dia assaz tranquilo, conferi o relógio e apurei um pouco mais o passo…
todos me aguardavam para o café, afinal. Como não? O pão é uma entidade milenar
dos desjejuns, introduzido na família brasileira pelos portugueses e muito bem
aproveitado pelo mercado. Ser derem mole a gente come pão em cinco das quatro
refeições do dia. “Bichos!”
“Bom dia!”. Atravessei o cruzamento do
singelo bairro de nome europeu com cuidado, o fluxo de carros naquele ponto é
grande, apesar do fim de semana. “Oncinha pintada, zebrinha listrada,
coelhinho peludo...”. Na entrada da padaria, encontrei um velho conhecido
do bairro – daquelas figuras que a gente conhece, porém mal sabe o nome. É
sempre “aquele cara que está na missa domingo”, “o que passa de
bicicleta de manhã”, mas cumprimenta-se cordialmente em toda oportunidade.
E naquele dia não seria diferente.
– Bom dia!
Tudo bem? – saudei-o sorridente, quando ele ergueu o olhar do celular. Fez um
silêncio estranho antes de responder, depois de uma bufada, um silêncio
estranho, incômodo e perturbador. Desacelerei o caminhar.
– Tudo bem,
tudo bem porra nenhuma... – resmungou o homem e prosseguiu. – Pô, tá tudo bem
não, federal. – concluiu, com as sobrancelhas unidas. Naquele momento pensei
que apenas um “Opa" teria sido suficiente. Mas o simpático Pacheco
resolveu perguntar se estava tudo bem.
– Ué,
amigo... – repliquei , evasivo. “Porque aqui na face da Terra só bicho
escroto é que vai ter".
– O carro
está no mecânico, ali no bairro Ypu… conhece? Muito bom. Tá fazendo a
suspensão. – continuou, guardando o celular no bolso e esfregando o rosto num
fastio. – Tá trocando coxim, bucha de balança, batente e até o calço do motor…
puta que o pariu.
– Carro é
outra família, não é? – afirmei, outra vez escapando da conversa, seguindo
lentamente para o interior da padaria, mas o verborrágico amigo, cujo nome eu
desconhecia, não parava de falar.
– Eu estava
na boca de ser promovido. Gerente! Aí o chefe chamou: “Paulinho...” –
ih, o nome do cara é Paulinho – “Paulinho, a empresa está se reestruturando,
vamos precisar suspender as promoções até o ano que vem...”. Ano que vem?
Fera, eu tenho mais de vinte anos de casa. Vou ter que esperar até ano que vem?
– Pensa
pelo lado bom: agora falta menos tempo do que faltava antes! – afirmei,
literalmente ainda mais distante, com uma réplica que não acrescentava em nada
o diálogo, já dentro da padaria. – Valeu, amigo! – encerrei, por conta própria,
com um aceno de mão, no momento em que, saindo sabe-se lá de onde, outro conhecido
se aproximava dele. Ufa!
“A
professora do meu filho desrespeitou ele em sala de aula… chamou ele de… como é
mesmo o nome? É tipo quando o cara está meio aéreo…”, continuava Paulinho, aos
atropelos, o peito arfante, o tom de voz febril e indignado. “Já aconteceu
comigo também...”, afirmou o interlocutor substituto, também pouco
interessado na conversa. Eu caminhava lentamente para o balcão da padaria,
distanciando-me sorrateiramente, a fim de não ter de participar outra vez do
desabafo terapêutico do recém promovido de simples conhecido a colega de
bairro.
Suspirei e
enrubesci ao ocupar finalmente meu posto na fila da padaria. “Dez pães, por
favor”, sem “Bom dia” e “Tudo bem”, desta feita – e está aí o
mote da minha vergonha. O cumprimento em lide é até muito simpático e latino,
mas é vazio, frio feito mármore. Sendo bem sincero, o brasileiro, cidadão
ci-vi-li-za-do, fraterno, benevolente e cortês, é na maioria das vezes um
sujeito muito do egoísta e superficial, mais interessado no próprio umbigo (e no
pão do seu café da manhã). O que me custava doar algum a minutos de atenção
sincera ao meu colega? Ahn? Não é todo mundo que amanhece de folga, com céu
azul de pouquíssimas nuvens, ao som de passarinhos. Eu o deixei, praticamente,
falando sozinho e isso é vergonhoso, digno de censura.
Já no
caixa, ergui a cabeça a fim de avistar a saída, ansioso por remir minha culpa,
minha tão grande culpa… mas não havia mais ninguém lá. Quem sabe eu lembre,
numa próxima. Quem sabe? É mais provável, porém, que eu me esqueça e torne a
repetir o erro. A profecia de Arnaldo Antunes e companhia se cumpriu. Somos “bichos
escrotos". Tudo bem? Não, não está tudo bem.
George dos
Santos Pacheco
* Publicado originalmente no Portal Multiplix, em 03 de maio de 2023. Foto: Dhiógenes Hendrix

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