Voltamos à nossa programação normal


Naquele tempo, o pároco da minha igreja era o Padre João. Mateus? Não, era João sim, lembro-me bem. Era alto, por volta de um metro e oitenta, levemente calvo e grisalho, cabelos penteados para trás. Usava óculos fundo de garrafa e tinha a voz lenta e melodiosa, de timbre grave. Eu sempre me lembrava dele nos filmes da Sessão da Tarde, quando o locutor da Herbert Richers anunciava a versão brasileira da película. Padre João gostava de grunge, bebia cerveja e fumava dois maços de Marlboro por dia. O café da manhã era composto de pastel dormido e café forte, sem açúcar. Eu gostava de imaginá-lo assim, isso reforçava em minha mente o que ele de vez em quando afirmava em suas homilias: era uma pessoa comum, pecador como qualquer outro. Mas vá lá, um padre não pode ser uma pessoa comum, não é mesmo? Para isso, o sujeito precisa de um autocontrole, uma postura antipecado, digamos,  acima de média, eu acho. E isso não é para qualquer um.
O Evangelho daquele domingo falava sobre o episódio em que Jesus subia ao monte para orar com alguns discípulos. Trocando em miúdos (bem miúdos mesmo), chegando lá, o Nazareno se transfigurou, sua face e suas vestes tornaram-se resplandecentes, e junto dele ainda surgiram Moisés e Elias. Dá pra acreditar? Se isso hoje nos deixaria perplexos, imaginem a dois mil anos atrás, terráqueos? A galera ficou maravilhada. Não queriam sair mais daquele monte não. Descer pra quê? Pra pescar e enfrentar a perseguição dos judeus e dos romanos? Fala sério!
O único que teve coragem de falar sobre o assunto foi Pedro: se aproximou de Cristo e sugeriu que se fizessem tendas para eles (Mestre é bom estarmos aqui!). Papai do Céu nem tomou conhecimento. Uma nuvem encobriu os três grandes, e tudo aquilo se desfez, tão rápido  e magnífico como se realizou, para desencanto dos discípulos. Desceram o monte e voltaram à sua vida normal. Aquilo não era para durar mesmo, era como se fosse... um fim de semana, um feriado, talvez.
Pensem se os discípulos saíssem dali como no Programa Silvio Santos? Em ritmo de festa? Eles eram pessoas comuns, tinham família, uma cruz pra carregar e a Boa Nova para anunciar. Não podiam ficar deitados em berço esplêndido esperando tudo acontecer. A vida continua. Mas.. quem sabe fosse no Brasil?
Aqui temos predileção pelo feriado  desde a colonização. É uma maneira fácil de engambelar e docilizar o povo, um refresco perante uma realidade muitas vezes cruel e miserável ( e se vocês não acham assim tão ruim, deem graças a Deus) – e as instituições perceberam isso desde o início, desde quando molharam os pés em praias brasileiras.
– Ô, gajo! É aqui o Brasil? – perguntou Cabral, se aproximando do índio, enquanto mordia um pastel de Belém.
– Meu Rei, você tá na Bahia. O Brasil fica mais acolá, no Rio de Janeiro! – respondeu-lhe o homem.
– Vixe, vai demorar pra chegar lá né? – retrucou o navegador, com tristeza.
– Ora, se vai... – disse num muxoxo.
– Pero Vaz! – chamou seu oficial de comunicação social – Anota, aí: vamos descobrir o Brasil aqui mesmo. E pra celebrar, decreto: hoje é feriado nacional! O que acha disso, tupiniquim? – perguntou dirigindo-se ao índio.
– Meu Pai, isso quer dizer que não preciso trabalhar hoje?
– De certo que não, nobre nativo.
– Isso é bom por demais! Ô, Iracema! Prepara as carnes pro churrasco... – gritou a plenos pulmões para a esposa na oca, mas retornou ao navegador. – Painho, se não é pedir muito, sabe como é, hoje é quinta-feira. Tem como a gente “imprensar” não?
– Pero Vaz! – gritou Cabral... e estava criado em todo seu esplendor, maravilha e entusiasmo, ele, o magnífico: o feriadão.
Vejam o Carnaval. O feriado é estrategicamente na terça, mas já na quinta anterior começa o bundalelê. É quase uma semana de bagunça, pra ninguém botar defeito. Todo mundo esquece quem é (e não faça essa cara, esquece mesmo), esquece que tem conta pra pagar, esquece os problemas econômicos do país, as falcatruas políticas, esquece o trabalho, esquece que tem mulher, que tem marido, esquece tudo: a cruz e a Boa Nova. Foda-se a porra toda. É Carnaval, vale tudo. Daí, tão mágico quanto começou, ele termina. Mas a galera continua pulando, como se num transe retardado. Tem desfile das campeãs, tem enterro dos ossos, bailes da ressaca... etc etal. Sábado de Aleluia tem churrasco. E assim vivemos num eterno domingo, como sabiamente disse Rita Lee.
Acabou? Acabou não, cara pálida. Daqui a pouco tem outro feriado, e outro, e depois outro... doses homeopáticas de abstração do mundo real.  Enquanto isso, nos entopem com campeonatos de futebol, reality shows, novelas e programas de auditório, polêmicas  inventadas... É bom estarmos aqui. Voltamos à nossa programação normal.
George dos Santos Pacheco
georgespacheco@outlook.com 

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