Acontece que o Januário cometeu a
descortesia de falecer. Bateu a caçoleta, abotoou o paletó, foi pra cidade dos
pés juntos. Morreu assim, de repente, de uma hora pra outra. Januário tinha lá
seus quarenta anos, o rosto marcado de vincos e queimado pelo sol. Parece que
passou mal na lavoura, qualquer piripaque desses no coração, quando as veias
entopem de tanto comer chouriço frito na gordura de porco como tira-gosto pra
cachaça. Não tinha filhos, mas deixara a esposa, cerca de uns dez anos mais
nova. Dona Carlota era jovem, esbelta, de olhos meigos e submissos, e
certamente encontraria um cafajeste e aproveitador, que a engabelasse com
palavras doces e gentis somente para por a mão em suas carnes, além das posses
de meu amigo. Culpa do Januário, apenas dele. Por que morrer justo agora?
A gente se conhecia desde moleque
e logo que fiquei sabendo da notícia, pus-me a caminho de sua casa, pro lados
do Arraial São Geraldo, onde seria velado. Naquela época, o transporte não era
lá essas coisas, em Friburgo e quem tivesse um pangaré para lhe servir, que
desse graças ao bom Deus pela bênção. Não era o meu caso, mas nem por isso eu
deixaria de agradecer. Eu estava vivo, meu amigo não. Pus um capote, um par de
botas grossas e fui caminhando mesmo, apesar da considerável distância entre o
Catarcione o destino. O que eu temia, na verdade, era que toda aquela chuva que
se anunciava nas nuvens carregadas resolvesse cair justamente enquanto eu ainda
estava em trânsito. Mas eu precisava ir.
Estalei os beiços, incomodado; as
gotas começavam a cair pesadas, o vento gelava os ossos. Ia chover, muito. Os
passos, cada vez mais apressados, eram impulsionados pelos clarões dos
relâmpagos que cruzavam o céu, tão belos e tão assustadores ao mesmo tempo.
Deus, que não chova. Vai ficar um lameiro danado, e eu aqui, sem poder chegar
nem ao velório, nem voltar pra minha casa. Entretanto, talvez por um milagre,
acaso ou seja lá o que for, subitamente surgiu um caminhão, que buzinou e parou
logo à frente, guinchando os freios. Era Luís, amigo em comum que viera ao
centro buscar o caixão de Januário. Assistência funerária é coisa desses
tempos, em que muita gente morre e pouca gente se importa.
Com a boleia cheia com outros
amigos, sobrava-me apenas a carroceria, onde se encontrava justamente a
derradeira morada do morto. Subi sem muita cerimônia, sentei-me a um canto e
Luís arrancou logo em seguida. A chuva voltou a engrossar, e então me ocorreu
uma ideia brilhante (ou nem tanto assim): para que eu chegasse minimamente
seco, a única alternativa era me abrigar dentro do caixão. E assim se fez.
Suspirei desconsolado, abri-o
cuidadosamente e deitei-me. O espaço era apertadíssimo: em cinco minutos minhas
mãos começaram a adormecer sobre o ventre. As gotas estalavam no tampo e eu respirava
com certa dificuldade. De todo modo, era bem melhor do que ficar na chuva. Com
sorte, eu até cochilaria. Quem sabe?
Dali a pouco, o caminhão parou
novamente e a carroceria deu um sacolejo. A voz fina de um rapazote agradeceu
ofegante.
– Aproveita e faz companhia pra
esse aí! – retribuiu Luís, simpático, engatando a primeira marcha para
colocar-nos em movimento outra vez.
E silêncio, o garoto calou-se de
uma vez por todas. O motorista arrancou e acelerou mais forte pela estrada
esburacada, sacudindo-nos morro acima como dois bonecos de pano. Deus, que
cheguemos logo, ou haverá dois velórios a serem realizados hoje. O ar estava
abafado, minhas pernas começavam a adormecer e eu a me arrepender dessa ideia
idiota de deitar vivo num caixão. Adivinha de quem é a culpa!
O som das gotas no tampo começaram
a ficar escassas e eu decidi que, definitivamente, já era hora de sair dali.
Abri o caixão de uma só vez, aspirando com vigor e satisfação o ar fresco.
– Já parou de chover, amigo? –
dirigi-me ofegante ao outro caroneiro.
O garoto arregalou os olhos e
escancarou a boca num grito mudo, pulando da carroceria com o veículo em
movimento mesmo. Virando um monte de cambalhotas no chão lamacento, sumiu morro
a baixo numa carreira desesperada.
Nunca mais o vi. Se ele quebrou os
dentes na queda, se perdeu o medo da chuva, não sei. Não sei. Talvez tenha
ralado as mãos e joelhos. Talvez. Mas de uma coisa tenho certeza: nunca mais pegou
caronas na estrada e deve ter horror a velórios. Culpa do Januário.

Comentários
Postar um comentário