Estamos ficando burros

Um dia desses, eu revisava um conto enquanto aguardava para ser atendido pelo médico. Minha técnica de revisão não tem nada demais: depois do texto digitado, eu o imprimo e faço as alterações (exclusões, inclusões, correções) à carmim. Após isso, eu digito as alterações, imprimo novamente o material e vou fazendo meus rabiscos até me dar por satisfeito – o que pode levar uns três ou quatro processos desse.

Pois bem, eis que minha vez de ser atendido se aproximava, e eu precisava parar subitamente a revisão. Antes de dobrar o papel, porém, procurei no canto superior esquerdo da folha um disquete para clicar e salvar meu tão importante trabalho.

Como assim um disquete na folha impressa?

Para você, jovem leitor, explico: o disquete era uma unidade de armazenamento utilizada no início da era digital e que virou símbolo nos pacotes office de “salvamento de arquivo”. E de tanto usar a tecnologia, minha mente me enganou e eu tentei salvar o arquivo na folha já impressa.

Você está rindo? Eu também ri, e os demais que também aguardavam atendimento na clínica devem ter me considerado um tanto louco. E será que não é verdade? Não será isso uma espécie de loucura ou um caso grave de emburrecimento tecnológico? Até porque não é a primeira vez que sou traído por minha mente devido ao uso abusivo da tecnologia. Numa outra revisão, corri o dedo indicador direito no canto da folha para a tela deslizar; já procurei as horas no rodapé da lauda impressa, entre tantas outras coisas absurdas que até me envergonho de tornar público.

Estamos ficando burros com tanta tecnologia. Antigamente, sabíamos os números de telefone de cor. E hoje? Está tudo registrado no aparelho celular e não precisamos mais nos preocupar com isso, basta procurar o registro no aplicativo “Contatos”, clicar em cima e realizar a ligação. Você sabe o telefone de sua esposa/esposo? Garanto que não! A data de aniversário dos amigos é alertada pela rede social, graças a Zuckerberg! E a senha do e-mail? Ela também está salva na memória do computador e smartphone (e Deus nos livre elas serem removidas de lá)!

Pois é. Platão falava sobre isso antes de Cristo. O aparecimento do alfabeto grego, por volta do ano 800 a.C., trouxe paulatinamente modificações profundas à cultura grega e que nos foram legadas. Em seu diálogo Fedro, a respeito da escrita, essa é chamada  de phármakon (φάρμακον), palavra grega que significa tanto “remédio” quanto “veneno”. No texto, o filósofo conta que o deus egípcio Theuth, descobridor da ciência do número e do cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo das damas e o dos dados, apresenta também a escrita ao rei do Egito, Tamos.

Este é um ramo do conhecimento, ó rei, que tornará os Egípcios mais sábios e de melhor memória. Está pois descoberto o remédio [=phármakon] da memória e da sabedoria”

Tamos responde-lhe:
“Engenhosíssimo Theuth, um homem é capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela vão fazer uso. Ora, tu, neste momento, como pai da escrita que és, por lhe quereres bem, apontas-lhe efeitos contrários àqueles que ela manifesta. É que essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforço próprio, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade, já que, recebendo, graças a ti, grande quantidade de conhecimentos, sem necessidade de instrução, considerar-se-ão muito sabedores, quando são ignorantes na sua maior parte e, além disso, de trato difícil, por terem a aparência de sábios e não o serem verdadeiramente”

Curioso, não é? Assim como a escrita representou em seu surgimento um remédio ou veneno para a memória e sabedoria, a tecnologia faz exatamente o mesmo, embora amplie os horizontes da memória coletiva. Um saber confiado à elas, pertence aos livros e às unidades de armazenamento, à “nuvem”, não pertence a você.

Não sabemos de mais nada, porque está lá no Google, na Wikipédia, basta pesquisar. As notícias, ninguém as lê, apenas seus títulos e manchetes na linha do tempo das redes sociais, curtindo e compartilhando sem saber exatamente o teor da matéria. Foi o tempo em que conversávamos pessoalmente, para isso existe o aplicativo de mensagens.

Deus do céu, e se não tiver sinal wi-fi? Nem uma receita culinária a gente consegue fazer.

Estamos ficando burros.

Há contudo, uma esperança: a diferença entre remédio e veneno é justamente a dose aplicada. Então, resta-nos apenas realizar um exame de consciência para descobrir se estamos nos envenenando ou nos medicando. E isso não se faz com o smartphone.

George dos Santos Pacheco 

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