O Homem e a Vaca


A relação do homem e o gado bovino teve início há mais de 5000 anos e, ao longo dos séculos, o boi vem adquirindo cada vez mais importância na vida do homem. Os seres humanos utilizavam o animal principalmente para transporte de carga, produção de leite em vida e carne/couro após a morte (era incomum a criação de gado para alimentação, sua carne era consumida apenas se ele morresse). 

Na Índia, onde prevalece o Hinduísmo, a vaca é considerada sagrada (tendo em vista o conceito de onipresença do Divino, inclusive nos animais, matar qualquer animal é pecado, pois obstrui o ciclo natural do nascimento e morte); no Brasil, a criação de gado iniciou-se acompanhando a implantação dos engenhos de açúcar, na primeira metade do século XVI; no livro do Êxodo (32:1-8), o boi é citado na criação do Bezerro de ouro, um ídolo solicitado pelo povo de Israel a Aarão, para que os reconduzisse ao Egito onde haviam sido escravos. Atualmente o termo designa “falso deus”, ou simbolicamente, o dinheiro. 

Mas não é da relação doméstica entre o homem e a vaca que eu quero falar. No livro “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca, a personagem Ada, observa uma vaca pastar, enquanto “rumina” seus problemas amorosos. 

(…) um dia, lá em Pouso Alto, estava vendo uma vaca pastar e disse para si mesma: cada obstáculo que a gente supera em nossa existência, principalmente os piores e mais horríveis, devem apenas nos fazer sentir mais ainda o prazer de viver. Percebi, olhando aquela vaca, como é bom estar viva! O resto, todo o resto não tem a menor importância se você sabe que está vivo, se você sabe o que é estar vivo. Naquele instante deixei de me lamuriar, deixei de sofrer por medo, paixão, anseios. Isso tudo faz parte de estar vivo. Não adianta me dizer que pensar assim é imoral, um individualismo imprudente ou lá o que for, porque não é nada disso, é apenas amor pela vida. Penso na vaca, logo, existo feliz. (Fonseca, 1984) 

A vaca pasta, mas não sabe porque pasta; vive sem saber que está viva. Nós não, os seres humanos, animais evoluídos. Sabemos que estamos vivos, e sabemos porque “pastamos”. Então, porque a gente se comporta feito uma vaca, às vezes? As coisas acontecem em nossas vidas e na sociedade e nos deixamos levar pelos acontecimentos sem refletir, sem analisar criticamente e nos posicionar diante deles, agindo de forma construtiva e corretiva. Então os astutos, donos do poder, nos conduzem por meio de diversos canais, e pimba! Agimos como eles querem, entendemos como eles querem, pensamos como eles querem. 

Acorde, meu camarada! Não somos vacas! 

O caso da redução da maioridade penal, por exemplo. O Brasil é um dos mais de 150 países em que pessoas são consideradas adultas a partir de 18 anos, e isso vale também  para a aplicação de penalidade a infratores: os mais novos cumprem penas mais brandas, em unidades socioeducativas. Acontece que justamente por isso, os menores são recrutados por quadrilhas, aceitando cometer ou assumir crimes no lugar de seus asseclas maiores de idade.

Mas somente a redução da maioridade penal, resolveria o problema da criminalidade da juventude? Eu acredito que não. É como sentir dor de cabeça todos os dias, e todos os dias tomar uma aspirina. Isso só vai mascarar o problema, a dor de cabeça vai passar por momentos, mas e a fonte da dor? Qual é? Está sendo tratada? Pode ser apenas uma sinusite, mas e se for um tumor? 

O problema, a meu ver, é o que leva essas pessoas a se marginalizarem. É isso que deve ser combatido, não é a simples mudança da idade em que o cidadão passará a ser preso que vai resolver o câncer. Então vejamos, se todos esses infratores menores de idade fossem presos hoje, haveria vaga em nossos presídios para todos eles? Ou seria necessário construir novos com os velhos problemas? 

Outra questão a ser levantada é a nossa cultura com relação à punição dos que cometem crimes de qualquer natureza: no imaginário popular, o bandido tem que pagar pelo que fez, para se arrepender, encarcerado em condições sub-humanas. Ora, ninguém nasce ruim, pessoas são moldadas pela fome, pela falta de acesso a uma educação, saúde, e segurança de qualidade. O que essas pessoas precisam é de ressocialização. 

Em 2013, uma matéria da Revista Carta Capital anunciava o fechamento de quatro prisões na Suécia, por adoção de penas alternativas e o investimento na ressocialização dos detentos. E no Brasil? Os condenados a penas prisionais, aprendem o quê durante o período encarcerados? Então é só isso: gemer e chorar no vale da sombra da morte, e expiar seus pecados?

Ainda segundo a matéria, o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, cerca de 274 por 100 mil habitantes. Provavelmente, a aprovação da redução da maioridade penal vai agradar a uma grande parcela da população, e servirá apenas para isso. Assim como a aprovação de cotas, redução de IPI e outras medidas paliativas, que não resolvem, mas agradam a muitos, gerando, inclusive, outros problemas, tão ou mais graves que os anteriores. 

É por isso, caro leitor, que conclamo, não seja uma vaca. Muitas coisas são feitas e ditas apenas para agradar, não para resolver. Encare toda e qualquer medida de maneira crítica e reflexiva: pensamos, logo, existimos.

George dos Santos Pacheco

* Publicado na Revista Êxito Rio, em 22/05/2015.

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