O serviço de externo parecia fácil, mas não era bem assim não. O
externo, na Marinha, é aquele militar – geralmente um marinheiro – que
tinha por incumbência pagar as contas do navio, fazer orçamentos,
compras, entregar e receber documentos (oficiais e particulares) nas
diversas OM (Organizações Militares) e instituições. É mais ou menos o
que se chama no “paisano” de office boy.
Pois bem, o externo, para cumprir essas funções, não dava pau , e
por isso era a menina dos olhos de todo marujo. Na minha vez, um
camarada foi convidado, mas declinou e perguntou se poderia indicar
alguém. Autorizado, me indicou – olha que gente boa! E lá estava eu,
externo do navio.
Quando a gente se encontrava no centro postal era bacana, por
rever os amigos e porque era a melhor ocasião para contar os mais
improváveis cenários.
– Dia desses o tenente mandou que eu comprasse uma vela de filtro
para ele... – comecei a explanação. – E me deu apenas o nome da rua
(Buenos Aires) e o nome da loja: Palácio das Velas. Eu nunca tinha
voltado para bordo sem cumprir qualquer missão, e eu faria de tudo para
que assim não fosse dessa vez. Mas eu já ficava sem esperanças, já havia
caminhado toda a Buenos Aires, e nada da loja.
Fui então para a Rua da Alfândega, já desconsolado, quando
avistei o dito espaço comercial e comecei a me aproximar. E quanto mais
eu me aproximava, mais a esperança de voltar para bordo com a vela do
tenente diminuía. A entrada da loja estava repleta de imagens, guias e
velas coloridas, de tudo quanto é tipo de tamanho. O Palácio das Velas,
nunca fora uma loja de filtros, mas uma loja de artigos religiosos. E o
tenente ficou sem a vela dele, e eu sem cumprir a missão! – concluí meu
cenário, e a turma caiu na gargalhada.
– E eu, então? – emendou o campanha lá do canto, franzino,
escondido atrás de todo mundo. Eu nunca o tinha visto por ali, devia ser
novo na função. – Semana passada eu fui na UISM (clínica psiquiátrica
da Marinha), entreguei uns documentos na secretaria e já estava vindo
embora quando dei de cara com um suboficial. Não deu tempo nem de fazer
continência, dei apenas um “boa tarde”, entre os dentes.
– Não está me vendo, boy? – perguntou ele, exaltado.
– Desculpa, sub...
– Sub, não: suboficial! – chamou-me a atenção. – Isso ainda é
Marinha, seu despreparado! Só a quantidade de jacuba que eu tomei dava
para matar você afogado umas três vezes!
– Desculpe, suboficial... – corrigi-me, assumindo a posição de sentido. O velha guarda era faca cega.
– Você serve onde, militar?
– Eu sirvo na Fragata...
– Nem precisa terminar, boy. Esse pessoal fragateiro se acha mais importante que todo mundo.
– Sub, eu não queria...
– Eu te autorizei a falar alguma coisa, boy? Você só fala quando
eu determinar, está me ouvindo bem? E vamos lá: deixou de fazer
continência para o mais antigo, uniforme em desalinho, barba por
fazer... – disse ele enquanto me rodeava, com as mãos para trás,
procurando os defeitos em minha apresentação. – Me dá teu nome e teu
número, boy, você está no livro de contravenções...
Daí eu dei as informações para o velha guarda, como ele havia
determinado, e saí – após ter pedido autorização, feito continência,
meia volta, e ter rompido marcha com o pé direito – pensando em como
tinha ido para o livro de bobeira. Logo eu, que vou cursar ano que vem.
Isso poderia me prejudicar, e muito! Eu caminhava de cabeça baixa e
chutando pedrinhas, quando, chegando à sala de estado, encontrei um
colega de turma, que me abordou.
– Fala aí, seu malhado, que cara é essa?
– Bicho, encontrei um sub faca cega ali no corredor que me
enquadrou todo. Acho que depois dessa eu nem vou cursar no ano que
vem...
– Como ele era?
– Um moreno, bem calvo, de bigode amarelado por nicotina, e olheiras escuras...
– Ih, cara, não esquenta não, esse aí é o Sub Nero. Ele é
paciente, é maluco de Marinha. Já botou um monte de gente boa no livro. –
tranquilizou-me o meu amigo. Que sorte o faca cega do sub ser maluco! –
concluiu o cenário meu mais novo campanha de função. A turma toda caiu
na gargalhada, e por isso fomos repreendidos pelo cabo velho da postal
(imaginem um monte de marinheiro rindo de se escangalhar?). E naquele
dia não houve ninguém que contasse um cenário mais surpreendente que o
do Sub maluco!
George dos Santos Pacheco
Notas
Pau: Gíria, como são chamados os serviços de pernoite na Marinha.
Cenários: Termo usado para descrever situações corriqueiras ou reveses, geralmente engraçados.
Campanha:Termo usado para amigo, companheiro, na Marinha.
Comentários
Postar um comentário