Certa manhã, a cidade acordou com um grande mistério: as pessoas
estavam desaparecendo. Não eram uma, ou duas, mas várias. Primeiro foram
os motoristas de ônibus. Todos, todos eles. Foi uma confusão daquelas,
mas ninguém se importou muito, afinal, dava para ir a pé para o
trabalho, de bicicleta, ou de táxi, ou em seus próprios carros.
Então sumiram os professores públicos. O que estava acontecendo,
enfim? Também os pro-fessores? Mas outra vez, pouco se importaram, há
gente que paga por esse serviço, então, que diferença faria se os
professores públicos sumissem? Em algum momento teriam de aparecer, ora
bolas, fosse na Copa do Mundo ou nas eleições.
Sumiram também os carteiros, os caminhoneiros, agentes
penitenciários... mas quem precisa de carteiros? Temos internet! Ou de
caminhoneiros? Agentes penitenciários, então... Assim, a maioria da
população e autoridades não estava nem aí para o sumiço generalizado e
epidêmico.
Por último, desapareceram também os garis, e em pleno carnaval. O
lixo foi se acumulando, acumulando... o mau cheiro, baratas, moscas e
ratos se espalhando, e a cidade se tornou um caos. A população
pressionou o governo: os garis precisavam voltar, de onde quer que
estivessem, não dava para esperar a Copa do Mundo ou as eleições.
Então, após rodadas de reuniões, o governo aceitou fixar o
salário-base da categoria em R$ 1.100, mais 40% de insalubridade, além
de R$ 20 diários de vale-alimentação, um aumento de 37% no salário, e de
67% no vale-alimentação.
Graças ao bom Deus! Eu já estava sentindo falta desses caras.
Como também se sente dos motoristas de ônibus (não dá para ir de carro
todo dia para o trabalho e nem a pé); professo-res públicos (quem perde
com a falta do professor, diretamente, é o aluno, mas e os pais que não
tem com quem deixar as crianças para ir trabalhar?); carteiros (há
contas que são disponibilizadas para download na internet, mas e as
encomendas?); caminhoneiros (não dá para baixar alimentos, nem
combustível pela internet...), agentes penitenciários (preciso explicar
porque eles fazem falta?)...
O que seria de nós sem essa turma toda? O homem é um ser social,
assim como os bovinos, os macacos, os elefantes, as andorinhas, as
sardinhas e as formigas. Estas últimas representam um dos mais
espetaculares casos de vida em grupo, e são as que melhor se encaixam no
que pretendo demonstrar. As saúvas, abundantes na região neotropical,
por exemplo, tem uma divisão de tarefas bem definida. A maioria é
composta de operárias, formigas fêmeas sem asas, divididas em castas:
mínimas (que se ocupam do "cultivo" de fungos e da alimen-tação das
larvas); médias (que se encarregam da escavação e do transporte dos
vegetais para o formigueiro); e as máximas (que são as que defendem o do
formigueiro). A rainha é a única fêmea fértil, cumprindo a função de
reprodutora do formigueiro. Assim, cada tarefa complementa outra, e a
sobrevivência do formigueiro depende de que todas sejam cumpri-das de
forma satisfatória.
Da mesma forma somos os humanos. Dependemos uns dos outros, para
tudo, desde que nascemos. Então porque uma valorização exagerada de
algumas profissões em relação a outras? Por que o preconceito com
tantas? Qual o mistério disso tudo?
O anúncio do aumento salarial dos garis dividiu opiniões. Ouvi,
por exemplo, uma mulher jovem comentar com outra que não concordava com o
reajuste, pois era professora, tinha estudado muito, feito faculdade, e
não tinha um salário considerável. Mesquinho, muito mesquinho. Não é o
gari quem está ganhando bem, é o professor quem ganha mal. Aliás, o gari
está recebendo o justo, como também deveria receber o justo o
professor, os motoristas de ônibus, os carteiros, os caminhoneiros e
agentes penitenciários. É difícil ser professor? Também é ser gari. E,
além disso, ele também sofre o preconceito de parte da população. A
escola, culturalmente, prepara para o acesso à universidade, e para quem
não logra êxito nos estudos, restam as profissões menos valorizadas. E
isto tem gerado preconceitos, que per-duram por séculos, reforçando
desigualdades sociais desde o colonialismo.
A escola, na verdade, deveria nos preparar para sermos bons
cidadãos e bons profissionais, seja lá qual for o nosso ofício. E assim,
quem sabe, não acharíamos injusto o aumento salarial do colega... Há
algum mistério nisso? Seria... o sumiço dos motoristas? O sumiço dos
professores, dos carteiros, dos garis? O salário justo? Ou o
preconceito, a mesquinhez nossa de cada dia? Qual é o grande mistério?
George dos Santos Pacheco
* Publicado na Revista Êxito Rio, em 27/03/2014.
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