Os olhos de Gabriela


Nova Friburgo, 1964

Fazia provavelmente duas horas que tínhamos saído de Recife, e pouco mais de vinte minutos que decolamos de Vitória. Sinceramente, eu nunca gostei de voos com escalas, a viagem fica muito mais cansativa. Contudo, trata-se de um Vickers Viscount, talvez, o avião mais confortável de nossos tempos. Pelo menos para mim, que, do alto de meus vinte e três anos, já havia experimentado o Scandia. O Viscount vibrava pouco, e quase não se percebia o som de suas hélices. E essas grandes janelas ovais são um espetáculo, tem-se uma visão extraordinária!

Viajo para São Paulo. Meu pai está lá há anos, empregado em uma montadora de carros; entretanto, sempre nos remeteu dinheiro para ajudar nas despesas. Decidi morar com ele, acredito que as coisas por lá serão um pouco mais fáceis. Mamãe chorou por dias, mas garanti que não a abandonaria, “entrarei em contato por cartas, e sempre que puder, voltarei para visitá-la”, disse. Mas sabem como são as mães, um filho ausente é uma ferida aberta.

O avião tem mais ou menos trinta e quatro passageiros, a maioria deles homens. As mulheres eram senhoras casadas e as mais jovens, filhas destas. Ao que tudo indica, pessoas bem abastadas, talvez empresários. Meu pai tinha gasto uma pequena fortuna para que eu fosse voando para São Paulo; se dependesse de minhas condições, teria ido de ônibus. Quando voei de Scandia fui até Salvador, a passeio, também patrocinado por meu pai.

A aeromoça é uma pequena adorável. Sua pele é extremamente alva, os pelos são praticamente ausentes. Os olhos são pequenos, mas cintilantes, e seu nariz arrebitado. Os cabelos negros estão presos em coque, deixando à vista seu pescoço esguio. Era um charme. Aproximou-se para servir-me e pude sentir seu perfume atraente. Sorriu para mim. Na ocasião, toquei sua mão quente e acho que ela correspondeu. Deixarei um bilhete com ela, chamando-a para a área do banheiro. As mulheres não ficam bem de uniforme, mas este, da Vasp, era uma exceção. E a Ângela – decidi chamá-la assim, é um anjo, evidentemente – estava uma maravilha. Haveria talvez, somente uma oportunidade e elas não podem ser perdidas, jamais.

– Romualdo, confere a rota, tem alguma coisa errada! – disse o piloto.

– Não pode estar errado... – murmurou o navegador absorto em seus cálculos.

– Estamos fora da rota... – balbuciou o copiloto, com os olhos assustadoramente abertos.

Foi tudo muito rápido. A viagem interrompeu-se bruscamente no maciço montanhoso da Caledônia, naquele 4 de setembro de 1964.
 
***

Gabriela levantou–se da cama, pegou o Tequinho – um urso de pelúcia azul um tanto surrado – e caminhou lentamente pelo corredor, até alcançar o quarto de sua mãe. Era possível ouvir os gemidos de mulher e o rangido da cama, que batia com força a cabeceira contra a parede.

– Mamãe... – chamou a menininha de cabelos loiros e rosto sardento. Esfregava os olhos, estava sonolenta. Como ninguém a ouvira, repetiu o chamado. – Mamãe!

– Gabriela? O que foi, minha filha? – disse a mulher parando rapidamente. Henrique ainda a bolinava e ela tentava desvencilhar-se a fim de atender a garotinha. – Pare com isso Henrique! – sussurrou ela.

– Eu não consigo dormir... – disse a menininha do outro lado da porta, que estava trancada.

– Vá deitar Gabi, já é tarde! – aconselhou a mãe, cedendo aos desejos do homem.

– Mas eu não consigo mãe... – repetiu ela tristemente.

A mulher levantou apressada, cobrindo-se com uma fina camisola, fazendo sinal de silêncio para Henrique. Abriu a porta o suficiente para que seu corpo passasse e fechou-a rapidamente.

– O que foi minha filha? Porque não consegue dormir? – perguntou pegando-a no colo.

– Eu ouvi alguém chorando...

– Não tem ninguém chorando, minha filha... – retrucou enquanto caminhava pelo corredor em direção ao quarto da menina, que mantinha os braços em seu pescoço.

– Tem sim, mãe, eu ouvi. – insistiu ela categoricamente.

– Foi só impressão sua. Agora volte a dormir. – disse Beatriz ao deitar a menina e cobri–la.

– Papai chegou, mãe? – perguntou Gabi abraçando-se a Tequinho.

– Não, minha filha, seu pai está trabalhando. – respondeu pacientemente, ao acender o abajur.

– Com quem a senhora estava falando, então? – insistiu a menina. A mulher ruborizou.

– Com ninguém, filha...

– Estava sim, eu ouvi! – afirmou a garotinha. Os pequenos tem essa capacidade de observar a tudo, perceber a tudo e ter a língua solta.

– Eu não estava conversando com ninguém, minha filha... eu estava... eu estava... rezando, minha filha. Eu estava rezando. – disse ela, dando um beijo na criança. – Agora durma. Boa noite! – disse ela, ao que foi correspondida, e saiu.

Caminhou apressadamente até o quarto, tinha algo inacabado a resolver. Abriu a porta rapidamente, tornando a fechar e trancando-a. Henrique estava deitado de lado, uma mão apoiava a cabeça, a outra, agitava violentamente seu garoto.

– O que essa pestinha tem?

– Não consegue dormir, acho que ela nos ouviu. Precisamos ser mais cautelosos... – advertiu ao tirar a camisola. Henrique ficou em decúbito dorsal e Beatriz pôs-se sobre ele. Deu dois tapinhas em sua face esquerda. – E não chame minha filha de pestinha! – recomendou, aproximando seu rosto para beijá-lo.

Gabriela levantou-se novamente, pegou o Tequinho, e seguiu outra vez até o quarto de sua mãe.

– Mamãe!

– O que foi dessa vez, Gabi? – respondeu Beatriz, impaciente. Henrique mordiscava suas costas.

– Não consigo dormir.

A mulher levantou-se mais rápido ainda, colocou a camisola, destrancou a porta, após um suspiro indignado e atendeu sua filha.

– Gabi, você tem que dormir, já é muito tarde. – disse ela tomando a garota pela mão.

– Mas eu não consigo mãe... – desculpou-se a menina.

– Por que você não consegue dormir, Gabriela? A mamãe foi lá, te cobriu, ligou o abajur, e porque você não consegue dormir? Está com fome?

– Não, mãe. Tem uma mulher chorando no meu quarto...

– Como é?

– Tem uma mulher chorando no meu quarto. – repetiu, ao chegarem à porta do mesmo. Beatriz acendeu rapidamente a luz do cômodo, não havia nada de errado, exceto pelo frio, que incrivelmente dominava o ambiente. Chegou a pensar que a janela estivesse aberta. Deixou a menina na porta e foi conferir. Estava fechada. Voltou para pegar Gabi.

– Minha filha, não tem ninguém aqui!

– Tem sim, mãe, ela está ali no canto, está nos olhando, está chorando... – insistiu Gabriela, apontando o dedo para o lugar, abraçando fortemente o ursinho. Não havia ninguém lá. A mãe sentiu um calafrio. Pegou-a no colo, a pôs na cama e a cobriu. Deu-lhe um beijo na testa e se despediu.

– A mamãe vai deixar a luz acesa, está bem? Agora feche os olhos e reze, daqui a pouco você vai dormir... – disse Beatriz, acenando e mandando um beijo com a mão, voltando apressadamente para seu quarto.

Gabriela virou o corpo para a parede e começou a rezar, mas distraía-se, e recomeçava suas orações de meio em meio minuto. Deixou de rezar, desvirou-se e sentou na cama.

– Porque você está chorando? – perguntou enfaticamente.

– Eu não sei, estou confusa...

– Fique calma, pense em alguma coisa boa! – sugeriu Gabriela.

– Não consigo... – disse cobrindo o rosto com as mãos.

– Tente. Mamãe diz que a gente não sabe se vai conseguir se não tentar.

– Tudo bem. – respondeu, ao se acalmar um pouco.

– O que aconteceu? – perguntou da mesma forma como fazem os médicos.

– Eu sou aeromoça... quero dizer, acho que sou... estou confusa! – informou ela.

– Não chora, não chora...

– Tudo bem... – disse fungando o nariz. – Eu estava em um avião, um moço chamou-me e eu fui atendê-lo. Ele era bonito, moreno e dos olhos claros. Parecia ter dinheiro. Entregou-me um bilhete chamando-me para ir próximo ao banheiro. Eu sabia o que ele queria, e acho que eu também quis. Esperei que ele fosse primeiro, depois o segui. Ele entrou no banheiro e após alguns segundos eu também entrei. Era muito apertado de modo que não cabíamos muito bem nele. O moço me beijou e... bem, ele fez outras coisas... eu saí do banheiro com medo de que me chamassem a atenção, e então – foi tudo muito rápido – houve um barulho muito forte, pedaços do avião se soltaram, algumas pessoas voaram pela abertura na fuselagem. Senti meu corpo ser levantado, eu podia ver as pessoas sofrendo, o avião se despedaçando em um morro, algumas árvores quebrando, foi horrível... – disse chorando cada vez mais.
– Não chora, não...
 
***

Estavam ofegantes sobre a cama. A mulher, completamente nua, começava a sentir frio, enquanto o homem não parecia se importar com a temperatura. Pegou um maço de cigarros na cabeceira, bateu-o na mão, acendendo um logo após isso. Pesquisas confirmam que a maioria dos acidentes com fogo é produto de falha humana.

– Você é muito gostosa... – disse ele dando uma baforada, cruzando as pernas e pondo a mão direita sob a nuca.

– Você é um safado... – comentou sentando à cama.

– Aonde você vai? – perguntou ele, apenas movendo a cabeça um pouco para o lado.

– Vou ver se a Gabriela dormiu... – respondeu. Ele parecia indiferente. – Coloque sua roupa, você não pode dormir aqui.

– Eu sei disso... – retrucou dando outra tragada.

Beatriz colocou novamente a camisola e seguiu para o quarto de sua filha. Caminhava vacilante, aquela história da mulher chorando deixou-a um tanto desconcertada. As sombras que penetravam pela janela da sala tingiam a parede, as cortinas bailando com o vento que entrava pelas frestas e o profundo silêncio tornava o ambiente ainda mais sombrio.

A luz do quarto de Gabriela já a alcançava e lhe davam uma sensação crescente de conforto. O silêncio estava a ponto de quase ser tocado: não se ouvia o menor ruído, nem mesmo a respiração sempre ofegante da menina. Parou ao umbral e observou o quarto. Estava tudo perfeito, até que... voltou o olhar para a cama da filha, notando com um gemido de pavor que o leito estava vazio...
 
***

Corria desesperadamente à procura da menina, Henrique a acompanhava. Eram vizinhos e ninguém poderia afirmar que estavam juntos, tendo em vista haver outras pessoas se deslocando apressadamente na mesma direção. Estavam todos confusos, havia um leve cheiro de fumaça que se espalhava rapidamente e um clarão que vinha do alto do morro.

“Gabriela!”, gritava Beatriz com a força que lhe era possível. Bento a mataria, com certeza, se acontecesse algo àquela garotinha loquaz e cheia de vida. Um caminhoneiro de mão pesada, como a própria Beatriz já havia podido confirmar. Um filho ausente é sempre uma ferida aberta. Ela corria descalça, os pés sangravam nas pedras do caminho, mas não tomava sequer conhecimento delas.

“Gabriela!”, gritou novamente, auxiliada agora, por alguns vizinhos. Henrique ficava cada vez mais para trás, escondido nas sombras. A essa altura já estavam próximos ao incêndio e Beatriz nem mesmo sabia por que razão procurava sua filha naquela direção. Estava frio, mas o calor das chamas equilibrava a sensação desagradável na pele.

O foco das chamas era um avião, completamente destruído. Seus destroços se espalharam por toda área, algumas árvores também estavam em chamas, assim como alguns corpos, despedaçados como a aeronave. A cena era horrível.
– Gabriela! – gritou Beatriz ao encontrar sua filha, parada e em pé, segurando seu pequeno urso em uma das mãos. Seus olhos estavam fixos em uma direção, quando sua mãe a tomou nos braços.

– Mamãe! – gritou a menina ao chegar ao colo da mulher, que chorava abundantemente. – Olhe lá a mulher de quem te falei... era ela que estava chorando... – completou a menina, apontando na direção de uma aeromoça, caída encostada em uma árvore, os olhos vitrificados e uma linha vermelha que traçava o canto da boca semiaberta. Sua cabeça pendia para um lado e o corpo estava totalmente inerte.
 
***

Há quem diga, que aquele avião chocou-se devido a um desvio de sua rota. Há quem diga que muitas pessoas se favoreceram roubando os pertences dos corpos dos passageiros da aeronave. Há quem diga, ainda, que os mortos não podem voltar a este plano. Há coisas, porém, que, naquela noite, somente os olhos de Gabriela puderam ver.

George dos Santos Pacheco

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