Nada é por acaso


Em uma realidade alternativa, não muito longe daqui, a sociedade se auto-organizava como as faces de um cubo mágico. Acontece que faltava uma peça, de forma que por mais que se ajustasse, as faces jamais ficariam perfeitas. 

Nessa sociedade, era comum as mães entregarem os filhos a carrascos para que estes os executasssem, quando, por qualquer motivo, não fosse mais do interesse da família continuar cuidando dessa criança. Não importava a idade deles, se eram saudáveis ou não, meninos ou meninas... e como não era uma prática prevista em alguma lei específica, o procedimento era realizado clandestinamente, o que causava uma série de transtornos. Assim que a criança percebia, lutava contra o carrasco e a mãe, e frequentemente morriam a primeira e a última. Cabia ao carrasco o descarte dos corpos de mães e filhos, sem chamar a atenção, mas é evidente que vez ou outra isso era impossível. 

Atentos a tudo isso e ao clamor de seus súditos, reis e rainhas cogitaram legalizar o procedimento, a fim de que este fosse feito com mais segurança, tendo em vista que o ato, apesar de imoral, já estava legitimado pela prática.
Em nossa realidade, isso seria absurdo, um ato repugnável. Como poderia uma mãe levar uma criança pelo braço até um carrasco? 

Repugnável. Todavia, milhares de mães – ricas e pobres, adolescentes, jovens e adultas – ao longo da história da Humanidade já recorreram ao abortamento e continuam a recorrer. 

Em nosso país, o aborto é considerado crime contra a vida humana pelo Código Penal Brasileiro, exceto em apenas três situações: quando há risco de vida para a mulher causada pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. E nesses casos, o governo oferece, inclusive, o aborto pelo Sistema Único de Saúde. Mas não se enganem: a permissão para abortar, não é uma exceção ao ato criminoso, mas sim uma escusa absolutória, que significa que mesmo havendo um crime, por razões de utilidade pública, o réu não está sujeito à pena prevista. 

É evidente que cada um de nós tem uma posição bem particular a respeito do tema, polarizando a discussão entre os que declaram contra, tomando por base conceitos religiosos, e os que se declaram a favor, levantando a bandeira do direito das mulheres. O Brasil, neste caso, herda o viés religioso instalado na colônia por Portugal, o colonizador católico. Deixados de lado os argumentos dos prós e contras, fica claro que o aborto é um problema de resolução bastante complexa e que gera efeitos em vários setores da sociedade, e que vem acontecendo nas sombras durante muito tempo. Não por acaso, foi deflagrada, no Rio de Janeiro, a Operação Herodes, após a morte de várias mulheres em clínicas de aborto clandestinas. Em um dos casos, o corpo carbonizado da mulher foi encontrado dias depois. A operação já prendeu mais de 50 pessoas, entre 75 mandados de prisão, desarticulando quadrilhas especializadas na prática. 

Segundo Dráuzio Varella, “a questão do aborto está mal posta. Não é verdade que alguns sejam a favor e outros contrários a ele. Todos são contra esse tipo de solução, principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente por não enxergarem alternativa. É lógico que o ideal seria instruí-las para jamais engravidarem sem desejá-lo, mas a natureza humana é mais complexa: até médicas ginecologistas ficam grávidas sem querer”. 

Concordo, em parte com o dileto médico. Como assim, “sem querer”? Uma gravidez não intencional, pode até ser, mas, sem querer, impossível. Quem faz sexo assume o risco de uma gravidez. Dessa forma, não acredito que a legalização irrestrita do aborto vá solucionar o problema, tendo em vista que já existem exceções ao crime previstos em lei (quando há risco de vida para a mulher, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico) e apenas isso bastaria. No que consistiria o direito das mulheres, então? A gravidez indesejada, pura e simplesmente? Não concordo, e não há o que me faria concordar. 

Imaginem, estimados leitores: se a prática do aborto sendo proibida é contabilizada aos milhares, legalizada, teria seu número duplicado, sem a menor sombra de dúvida. Sendo você contra ou não. 

Aliás, se afirmar contrário aos costumes ditos “conservadores” virou moda; aqueles que se posicionam dessa forma ganham status de modernos e liberais, e gostam de ser vistos assim. Há quem bata no peito se posicionando a favor do casamento gay, a favor do aborto, a favor das cotas em cargos públicos, a favor de quase tudo, apenas por modismo. É cool ser contra. Além daqueles – e não podemos nos dar o luxo de esquecermos disso – que têm um interesse velado no assunto, principalmente quando envolvida a política. Ou seremos ingênuos o suficiente para acreditar que nossos representantes apoiam uma causa ou outra por puro altruísmo? Nada é por acaso, amigos! 

Independente de qualquer coisa devemos nos proteger desse maniqueísmo que divide a sociedade em maus e bons: os que se manifestam contra ou a favor do aborto. Isso é perigoso porque desestrutura, desagrega, desune; põe em lados opostos grupos que na verdade deveriam discutir pacificamente uma solução mais adequada para o impasse. Um grupo dividido é mais fácil de controlar. 

A legalização do abortamento é apenas uma medida paliativa, encará-la como solução, apenas muda o foco do problema. Em vez disso, o governo deveria investir mais em educação, em saúde e segurança pública. Porque com uma educação pública de qualidade, grande parte das gestações indesejadas poderia ser evitada; com saúde pública de qualidade, muitas dessas mortes poderiam ser evitadas; com segurança pública de qualidade, seria possível desmantelar e desestimular o estabelecimento de clínicas de aborto clandestinas; e mais ainda, com o olhar atento do governo, pode-se coibir com mais eficácia a adultização e erotização precoce de nossas crianças. 

Não há dúvida que a problemática do aborto é mais do que atual, um problema de saúde pública que merece a devida atenção e soluções urgentes. Resta saber se o povo está preparado para enxergar a sociedade como cidadãos críticos e reflexivos, percebendo que ao fim e ao cabo, muito pouco ou quase nada é por acaso. 

George dos Santos Pacheco

* Publicado na Revista Êxito Rio, em 10/11/2014.  

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