Café Amargo


Há algum tempo que tudo começou. Não foi assim, de repente, mas a cada dia, lentamente, como o outono ao se aproximar, derrubando as folhas das árvores pouco a pouco. Quando percebemos, elas estão inteiramente nuas, cobertas apenas pela casca grossa e algum musgo. Até os pássaros que se abrigavam sob sua sombra agradável partem. Nada de sua beleza e exuberância restara.

Da mesma forma aconteceu com José Luís. Quando o conheci era um belo moreno, com vinte e sete anos, um metro e oitenta mais ou menos. Gostava de rodas de pagode, assim como eu, e sempre foi muito simpático e cuidadoso comigo. Ainda não tinha experimentado tamanho carinho. Eu era apenas um pouco mais velha, tinha trinta e dois anos, minha filha, quinze. Eu a tive tão jovem como ela, cheia de sonhos e planos. O mundo parecia um conto de fadas, mas logo descobri que ele não era tão belo assim. Meu príncipe encantado jamais assumiu nossa filha, e desapareceu, como à galope. Nunca mais o vi, ou tive notícias dele.

Então, depois de tantas decepções, surgiu José Luís. Finalmente havia encontrado alguém me faria feliz e completaria minha família. Ao passo de três meses ele veio morar conosco. Eu trabalhava como manicure, em um salão perto de casa, e ele como cobrador de ônibus. Saía bem cedo e retornava pouco depois do almoço. Susana a essa hora também já retornara da escola.

Após poucos meses, percebi algo estranho no comportamento do moreno. Ele passou a chegar bem mais tarde, agitado e confuso. O cheiro da bebida estava impregnado em sua roupa, e nunca ousei perguntar o porquê disso, mas desconfiei se tratar de algo com seu emprego. Toda vez que ele chegava em casa, pedia-me uma xícara de café bem quente, que eu sempre lhe servi de bom agrado.

Em um desses dias, por volta das seis da tarde, eu estava preparando o jantar, quando ele chegou escancarando a porta com brutalidade. Susana estava na casa de minha mãe, ajudando-a com uma encomenda de bolo e doces para festa.

- Boa noite amor! - disse eu ao ir a seu encontro.

- Fez meu café? - limitou-se a dizer.

- Eu estou fazendo o jantar... - expliquei enxugando minhas mãos no pano de prato que estava preso à cintura.

- Você fez, ou não fez? - perguntou, parecendo ter a boca adormecida.

- Não fiz, moreno, mas posso fazer agora... - disse ao desfazer meu sorriso, e virando as costas, retornando à cozinha. Ele não havia me dado ao menos um beijo...

- Então faça já! - disse ele desferindo-me um violento golpe nas costas e derrubando-me ao chão, onde já caí em lágrimas. - Eu já não falei que quero meu café pronto quando eu chegar? - esbravejou chutando-me na altura das costelas. Seus olhos derramavam ódio, como duas grandes labaredas de fogo.

- Por favor, pare! Eu farei o café! - supliquei, tentando me defender com as mãos de suas investidas.

Luís foi para a sala e sentou-se no sofá, como se nada houvesse acontecido. Ligou a televisão e ficou assistindo, no aguardo é claro, de seu precioso líquido quente. Levantei-me com extrema dificuldade e preparei o mais rápido que pude sua bebida, e o servi.

- Mas, está muito bom... - disse ele mais calmo, porém, ainda com os sintomas da embriaguez. - Sente aqui... - disse ele oferecendo-me a perna. - Por favor, me desculpe! Eu sei que errei... - balbuciou com lágrimas nos olhos. Eu nada lhe respondi, mas ele continuou a desculpar-se, agora beijando meus lábios e pescoço.

- Pare, por favor... - pedia a ele fungando. Mas ele não parou. Pôs a mão sob minha blusa e tocou meus seios, enquanto mordia meu pescoço com avidez. - Não, eu não quero! - disse tentando me erguer, mas ele segurou-me com mais força, e deslizando as mãos por entre minhas pernas, forçou para que eu as abrisse.

Foi então que eu percebi que meu pesadelo estava apenas começando... O moreno jogou-me ao chão e levantando minha saia, tomou-me com extrema violência, alheio às minhas lágrimas e minhas súplicas desesperadas para que ele parasse.

Movia seu corpo num sentido de vaivém frenético, enquanto eu implorava angustiada. Ele me respondeu com tapas e socos, deixando marcas profundas em minha pele e minha alma. No auge de seu gozo, segurou minha garganta fortemente com ambas as mãos, e pensei que fosse morrer naquele instante, ao sentir o ar me faltar. Mas soltou as mãos devagar, e deixou seu corpo pesado cair sobre mim, ficando sonolento rapidamente. Eu sentia um nojo terrível dele e de mim mesma, e tomei um banho demorado, para limpar toda aquela imundície que penetrava todo meu ser. Mas eu me sentia mais e mais impura diante de tudo e de todos!

Quase todos os dias eram assim, aumentando ainda mais minha amargura. Bebida, agressão, café e sexo. Eu queria denunciá-lo, mas temia por mim e por Susana. Eu tentava de todos os modos esconder dela o que estava acontecendo, mas as marcas arroxeadas em meu corpo e sobretudo no rosto me denunciavam. Contudo, adverti-a severamente para que não ficasse um só segundo em casa com este maníaco.

Um dia, no meio da tarde, voltei em casa para buscar um material, para usar no salão. Quando aproximei-me da porta, ouvi gemidos e um choro contido. Senti meus músculos enrijecerem. De alguma forma, eu já sabia o que estava acontecendo. Abri a porta bruscamente, procurando de onde vinha o barulho. Avistei o monstro contorcendo-se seminu sobre Susana, em seu  quarto.

- Solte-a, seu vagabundo! - gritei desferindo vários socos, mas ele parecia não tomar conhecimento.

- Mãe! Me ajuda por favor! - implorava ela aos prantos, embebida em suor, profundamente marcada por mordidas, por onde aquela boca nojenta havia passado. Seu rosto também estava muito inchado.

- Largue ela! - insisti, mas ele deu-me um forte golpe, atirando-me ao chão, onde fiquei, impotente, assistindo a cena tão aterradora.

- E você cale a boca! - esbravejou ao dar um murro em Susana, que quase desmaiou. - Antes que você dê para os outros, sua putinha, eu devo experimentá-la... - disse ofegante, com a voz entorpecida. Ambas chorávamos, suplicando que parasse com aquilo. Mas minha aflição aumentou quando o vi fazer o mesmo que fizeram a mim, estrangulando-a até quase matá-la, soltando logo em seguida. Esse momento era o mais nojento de todos e então chorávamos de soluçar. Só uma mulher pode imaginar o que é isso.

Depois de explorar o corpo de Susana, ele a abandonou, pôs uma camisa, e saiu novamente, sem dizer uma só palavra. Corri para acudí-la e choramos abraçadas. Dei-lhe um bom banho, e depois de acalmá-la, na medida do possível, despedi-a para que fosse à casa de minha mãe, mas pedi que lhe ocultasse por hora  o que havia acontecido.

- Mas mãe! O que vai fazer? Não pode ficar aqui sozinha!

- Não se preocupe comigo, está tudo bem. Durma na casa de sua avó, para sua segurança...

 - Estou com medo... - murmurou fungando, cabisbaixa, mas reiterei minha ordem e ela seguiu, não sem antes dar-me um forte abraço, como se fosse o último.

Essa situação estava ficando fora de controle, e por mim, e principalmente por minha filha, decidi que faria alguma coisa. Culpei-me por não ter feito antes, antes que... que Susana pudesse ter sido maculada.

Um pouco mais tarde, aquele porco nojento chegou mais bêbado ainda, e perguntou pelo seu habitual café. Eu já o esperava, e respondi-lhe sorrindo que o estava preparando, para que pudesse bebê-lo fresco, ainda bem quente.

A televisão estava ligada e ele sentou-se no sofá, após dar-me um tapa e vociferar alguns palavrões. Mas não faz mal, tudo isto já está no fim.

Acendi o fogo da chaleira e fiquei aguardando que a água fervesse, quando ouvi um som estranho na sala. Segui na ponta dos pés a fim de descobrir do que se tratava, sem chamar-lhe a atenção. Havia saído melhor que a encomenda. Luís estava caído no sofá, dormindo a sono solto. Molhava o estofado com sua saliva fétida e nojenta.

Voltei a cozinha com um sorriso sórdido, e desliguei o fogo da chaleira, pois a água já fervia. Estava na hora de por minha trama maligna em prática... E eu tenho de admitir que a sorte me sorrira ao entorpecê-lo de sono. Peguei o cabo da chaleira, protegendo-me com um pano de prato e segui para a sala enquanto lembrava de nossos momentos felizes, e de toda sua violência comigo e minha filha. Isso precisava acabar... Cutuquei-o com a ponta do pé, e ele nem se mexeu. Dormia feito uma pedra. Então despejei a água fervente diretamente em seu ouvido. Ele deu um grito abafado, enquanto debatia-se, revirando os olhos aterrorizados pela dor. Eu sorria placidamente, divertindo-me com a cena. Ele ainda permaneceu durante algum tempo contorcendo-se e gemendo, caindo ao chão, terminando sua vida com espasmos irregulares. Derreti seu cérebro, e ele nunca mais faria mal a nenhuma mulher.

A bela árvore exuberante havia se desfolhado, e nunca mais teria flores, nem frutos. De nada mais ela servia, a não ser para lenha. Dessa forma, deve ser cortada, extirpada desse campo.

Depois disso, segui pra minha cama, e dormi o sono mais tranquilo que eu já havia experimentado. Sei que devo e vou pagar pelo que fiz. Mas não me arrependo nem um pouco. Dizem por aí que um bom café amargo cura qualquer bebedeira. Tenho certeza que o último café de Luís, que ele jamais bebeu, foi o mais amargo de sua vida.

George dos Santos Pacheco

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