Uma rajada de vento, frio e seco percorreu-lhe o corpo. Ouvia vozes
distantes que lhe eram difíceis de ser compreendidas. Sentiu uma mão
quente e macia tocar-lhe o braço e isso foi agradável. Inspirou
fortemente e abriu os olhos. A iluminação o incomodou, como se houvesse
muito tempo que não a experimentava, mas resistiu. À beira de sua cama
estava uma linda mulher, com cabelos negros, curtos, mas que
ultrapassavam os lóbulos de suas orelhas. Aproximava de seu braço algo
similar a uma caneta. O homem segurou-a fortemente.
– Quem é você? – disse ele.
– Seja bem vindo! Sou sua enfermeira...
– Enfermeira? O que estou fazendo aqui? – disse ele soltando os eletrodos que estavam conectados a seu corpo.
– Não faça isso! – disse ela ao que ele apertou ainda mais seu braço.
– Solte-me! Está me machucando! – disse ela com lágrimas nos olhos, se contorcendo de dor.
O
homem a soltou e enquanto ela se recuperava, saltou da cama, e caminhou
passos precisos em direção à porta, mas a mulher tentou impedi-lo.
– Não pode fazer isso senhor! – disse ela segurando-o, mas ele atirou-a sobre a cama em que estava, com extrema força.
Outros
enfermeiros o avistaram no corredor e tentaram detê-lo, mas ele correu
sobremaneira, esbarrando em várias pessoas. Atravessou macas no caminho
para dificultar seus perseguidores, e com isso ganhou distância e entrou
em uma porta qualquer. Era um vestiário, para sua sorte. Já era hora de
por uma roupa...
– O que estou fazendo aqui... –
repetia ele. – Acho que os despistei... – pensou. Vestiu um uniforme de
enfermeiro, que furtara de um dos armários. Assim seria mais fácil sair
dali.
Saiu do quarto à procura da portaria. Nos
corredores tinha gente correndo para lá e para cá. Felizmente não o
reconheceram. As paredes eram extremamente brancas e o ambiente
muitíssimo iluminado. As roupas que as pessoas usavam eram um tanto
diferentes, assim como o sotaque. Passou em frente à sala em que estava.
“RECUPERAÇÃO DE CRIOGENIA” estava escrito na porta. Então era isso!
Estava infectado por essa tal doen-ça, a criogenia. Devia ser ela que
causava essa terrível dor de cabeça... Mas como foi parar ali?
Avistou
a porta principal. Finalmente sairia deste lugar. Já sentia a claridade
externa quando percebeu a proximidade de alguém. Não olhou para trás,
porém se apressou.
– Hei! Você! – gritaram.
Lá
estava ele correndo novamente. Enquanto corria, deu uma olhadela para
trás. Um batalhão de policiais estava em seu encalço. Usavam um uniforme
parecido com uma armadura, de cor metálica, com algumas partes
compostas de neoprene. Usavam também um capacete que cobria toda a
cabeça, nos mesmos moldes da roupa, com visores esféricos. Empunhavam
armas estranhas.
Chegou a um estacionamento, pulou em
uma moto e deu a partida. Um pequeno propulsor sob suas pernas foi
acionado e ele começou a ganhar altura. Mas isso não era possível! O
veículo não tinha rodas, assim como todos os outros que ali estavam. –
Devo estar ficando louco! – pensou. A moto ganhou cada vez mais altura e
só agora pode perce-ber os prédios. Eram altíssimos, com formas
estranhas e em sua maioria espelhados. Vários automóveis circulavam a
uns cinqüenta metros do chão. Os policiais o perseguiam em máquinas
similares a dele, em alta velocidade, porém seu aparelho desviava dos
obstáculos com maestria. Mais tarde veio a descobrir que sua máquina
estava equipada com um sensor de alta definição que corrigia
automaticamente sua rota. Nenhum veículo saía de fábrica sem o
equipamento...
Embora tentasse despistar, seus algozes
estavam cada vez mais perto. Foi então que apareceu uma outra moto, que
se emparelhou a dele.
– Por aqui! – disse a pessoa, que
usava um estranho capacete, formado por um grande visor. Ele não tinha
muitas pessoas em quem confiar, então seguiu.
Seu novo
amigo guinou a moto em direção a dos edifícios e não ameaçou desviar da
parede que surgia rapidamente à sua frente. No momento exato, puxou o
guidom para si, rumando o aparelho para o zênite, e ele fez o mesmo. Um
de seus algozes, porém, não teve a mesma sorte, batendo em cheio na
construção. Era sua chance de livrar-se dos ou-tros!
Chegaram
até outro edifício, aparentemente abandonado. Pararam em um dos
an-dares, que era um estacionamento. Para sua surpresa, seu amigo tirou o
capacete, soltou os longos cabelos ruivos e se aproximou. Era uma
mulher!
– Tudo bem? – disse ela. Sua pele era clara e seus olhos castanhos. Apesar de simpática, seu olhar era inexpressivo.
– Mais ou menos... – disse ele com uma das mãos na testa. – Não estou entendendo nada, e sinto uma terrível dor de cabeça!
– Meu nome é Zaila. Qual é o seu? – disse ela pousando a mão sobre seu ombro.
– Eu... eu não sei! Não me lembro! – disse ele cabisbaixo.
– Você tem cara de Marvin...
– Ora, chame-me como quiser! – Quero apenas voltar para minha casa!
– E por que eles estavam te perseguindo? Você me parece inofensivo... – disse ela após examiná-lo com os olhos.
–
Eu, também não sei. Mas que droga! – disse ele dando um soco na parede.
– E o que fizeram com as rodas dos carros? – disse com o olhar perdido.
– Como disse?
–
A roda dos carros! – disse ele. – Não entendo onde foram parar! E essas
roupas? Que moda mais estranha essa de usar as golas para cima. E elas
têm um brilho demasiado forte. Tudo é muito estranho! Os prédios, as
pessoas, o sotaque, carros que voam, homens de armadura... – disse ele
após um suspiro. – Parece que estou numa viagem de ácido lisérgico! –
disse caminhando de um lado para o outro.
– Decerto que
perdeu a memória, Marvin, mas vou tentar ajudá-lo. – disse serenamente.
– Os policiais devem estar ocupados socorrendo seu amigo, de modo que
temos ainda um pouco de tempo. Sente-se um pouco. – disse ela enquanto
era obedecida. – Em 2012 houve um terrível colapso nuclear, que dizimou
um terço da humanidade. O presi-dente de um dos maiores países do mundo
foi assassinado em território estrangeiro...
– Você falou 2012? – disse ele se levantando, boquiaberto. – Que brincadeira é essa?
– Não há brincadeira alguma. Procure se acalmar... – disse ela tirando uma mecha de cabelo vermelho que caíra sobre a testa.
– Mas que história é essa? Estamos em 2010, sua louca! –
–
Acalme-se, você entenderá... Como eu disse, depois que o presidente foi
morto, seu país contra atacou com mísseis e o outro respondeu da mesma
forma e alguns países se aliaram a eles. Era a Terceira Guerra. Durou
apenas um ano, não havia condições para mais que isso. Os países
vitoriosos perceberam ao final que o planeta devia ser abandonado
imediatamente. A vida na Terra tornou-se um desafio. Grandes naves foram
construídas para a viagem. Receberam o nome de arcas. Já haviam
descoberto água em Marte, de modo que ele tornou-se nosso refúgio...
– Então estamos em Marte?!
–
Veja... – disse ela pegando um aparelho do bolso. Era quase que apenas
uma tela, com pequenas teclas nas extremidades. Abriu um jornal do dia.
Estava escrito: “Colônia de Marte, 07 de outubro de 2049”...
– Não é possível... – murmurou ele. – O céu é o da Terra... – disse ele olhando para cima.
–
O céu é apenas uma projeção, para tornar o ambiente parecido com o da
Terra. Somente à noite o céu que é visto é o de Marte. – disse ela
guardando o aparelho. – Agora acredita?
– Acho que... sim, mas eu não entendo como...
–
Depois que as arcas foram construídas, reuniram as espécies de animais
que sobreviveram, e os povos do Terceiro Mundo, pois entenderam que eles
seriam os que mais sofreriam. Na fuga, houve um acidente, e algumas
arcas colidiram, na órbita da Terra. Os que chegaram aqui conseguiram
reproduzir quase que perfeitamente nosso habitat. Ainda hoje existem
algumas expedições para a Terra, a procura de sobreviventes, todas sem
sucesso.
– Isso não faz sentido! Veja: por que os
países que ganharam a guerra não escaparam da Terra primeiro? Por que
deram prioridade para os derrotados, pobres do terceiro mundo? São
bonzinhos? – disse ele se aproximando da rampa da garagem, ficando de
costas para ela.
– Onde estão eles? Estão aqui também ou ficaram lá?
– F-ficaram lá... – gaguejou ela.
–
Foi o que eu pensei. Não acha que o natural seria que eles fugissem,
pouco importando os perdedores? Eu acho que o Terceiro Mundo comprou
gato por lebre...
– Você é um homem muito esperto Marvin... A criogenia parece não ter afetado sua inteligência... – disse ela se aproximando.
–
Não sei como me infectei com essa doença, mas... espere... – disse ele
virando-se devagar. Estava visivelmente perturbado. – Em nenhum momento
eu lhe falei sobre isso!
Ela estava à sua frente, com o
corpo muito próximo ao seu. Atrás dela, à distância, havia alguns
militares com as armas estranhas miradas nele.
– Você mentiu para mim! – disse ele se afastando de costas para a rampa.
–
Tente entender Marvin, é trabalho. Criogenia não é uma doença, é uma
técnica de congelar corpos e reanimá-los anos depois. No ano terrestre
2008 foram feitos os primeiros testes com humanos. A intenção era
incorporar o processo ao sistema prisional em todo o mundo. Não haveria
problemas de fugas e rebeliões...
– Então sou um criminoso?
–
Não. Você foi um voluntário para os testes. Era para ter sido
descongelado após dois anos, mas na fuga sua câmara de criogenia foi
misturada equivocadamente com as câmaras dos aprisionados. Sinto
muito...
– Sente muito? Eu perdi anos de minha vida!
– Doutora, saia da frente! – disse um dos soldados com a voz metálica, mas ela não obedeceu.
– Neste tempo, já aprenderam a voar Zaila? – disse ele agarrando-a.
– O que está fazendo? – disse ela assustada.
– Fugindo... – disse ele pulando de costas da rampa, levando consigo a Dr.ª Zaila.
–
Doutora! – gritou um dos militares se aproximando da rampa, mas não
podiam fazer mais nada. Por um momento acreditaram que ambos haviam
morrido, mas um dos soldados os avistou em fuga, numa moto em altíssima
velocidade.
Marvin sabia que enquanto estivesse com
ela, não fariam nada a ele. E ademais, precisava descobrir o que havia
acontecido realmente ao seu mundo. Teria ele sido destruído, ou tudo não
se tratava de uma grande conspiração?
George dos Santos Pacheco
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