As coisas não iam nada bem em Abaruna, uma pequena cidade encravada
na serra fluminense. Um lugar aprazível, de clima ameno, com rios e
cachoeiras onde muitos mergulhavam a fim de restabelecer suas forças,
exauridas pelo trabalho diário. Com essas qualidades, havia ganhado o
apelido de “Pedaço do Céu”, que estava grafado em uma placa, no pórtico
da cidade. Sua economia girava em torno da pecuária, onde os mais ricos
criavam bois, enquanto os mais pobres, cabras. Sepúlveda era um deles.
Havia se mudado para lá há um ano com Margarete, sua esposa, buscando
uma vida melhor.
Levantava todos os dias às cinco da manhã.
Ordenhava algumas cabras, depois soltava todo o rebanho para pastar,
recolhendo-os à tardinha. Com o leite, sua dedicada esposa fabricava
queijos que eram vendidos na cidade. À noite costumava ir à venda tomar
uma pinga, jogar sinuca e conversa fora, enquanto Margarete ficava em
casa rezando. O assunto da vez era o aparecimento de uma onça na região.
Dezenas de animais estavam aparecendo mortos nos sítios, com os corpos
dilacerados. Não sobrava quase nada.
– Bota mais uma Chico! – disse ele, segurando o taco em uma das mãos.
–
Então compadre, devemos formar um grupo para caçar essa onça. Senão,
dentro de pouco, nós mesmos correremos perigo... – disse Sebastião dando
uma golada na cachaça, deixando escorrer pelo canto da boca, que ele
eventualmente limpava com a manga da camisa.
– De acordo compadre!
– disse o Dr. Nunes, o único fazendeiro presente. Falava como se também
fosse integrar o grupo. Não iria. Com certeza seria um empregado seu...
–
Devemos ter cuidado senhores... Afinal, ninguém viu ainda a tal onça...
– disse Zaqueu, o mais moço, que era filho de Sebastião.
– Não
entendo o porquê dessa sua insegurança... O compadre Moura viu a onça
devorando uma de suas cabras, não foi Moura? – disse o pai de Zaqueu.
–
Na verdade... não tenho certeza se era uma onça... – disse Moura
abaixando a cabeça. – Apesar de a noite estar clara pela lua cheia, o
bicho estava longe e eu não pude ver mais que seus olhos vermelhos. Mas
era grande, do tamanho de uma onça ou maior.
– Você disse Lua Cheia? – perguntou Dr. Nunes.
– Sim doutor... – respondeu Moura.
– Temo estarmos lidando com uma criatura do mal... – disse ele limpando o suor da testa.
– Não entendo o que quer dizer com isto... – disse Moura. Os outros, escutavam atentos. Ele não era de falar bobagens.
– Isso que o compadre Moura viu, realmente não era uma onça. Era um lobisomem...
–
Mas isso não é possível! Nunca tivemos isso por aqui... – reclamou
Sepúlveda. Fez movimento como se fosse sair, mas pareceu desistir no
caminho.
– Também nunca tivemos onças... – disse Zaqueu, que
também não parecia acreditar no que ouvia... O assunto era fantasioso
demais, mas não havia explicação coerente para os animais mortos.
–
Isso não existe gente! Vocês estão malucos? – disse Chico, o dono da
venda. Até agora tinha ficado quieto, mas o teor das últimas palavras o
incomodou. Como podem achar possível uma coisa dessas? – pensava ele.
–
O fato é que se não fizermos nada, um dia pode ser um de nós que
amanhecerá morto pela criatura, seja ela onça ou lobisomen... – disse
Dr. Nunes seriamente. Era o único que parecia acreditar plenamente na
existência das tais criaturas.
– Para mim chega! Vocês estão todos bêbados, a começar pelo doutorzinho! – disse Sepúlveda, ao sair do bar, cambaleante.
– Me respeite Sepúlveda! Volte aqui, seu borra botas! – disse ele levantando-se. Cuspia ao falar, e seu rosto havia corado.
– Acalme-se homem... – disse Chico.
–
Façamos o seguinte, senhores: Iremos todos para casa hoje, e pensaremos
no assunto. Amanhã nos reuniremos mais uma vez e decidiremos o que
fazer... – disse Dr. Nu-nes com uma autoridade que nenhum outro tinha.
Os
homens saíram um a um da venda, calados e preocupados. Suas casas
ficavam a léguas dali e a noite ia alta. Por mais que não acreditassem
na história, os sons dos animais noturnos e o vento que sibilava nas
árvores assustavam. Mas eles fingiam não se abater...
– Então pai... Acredita nessa história? – perguntou Zaqueu enquanto caminhavam pela estrada empoeirada.
–
Olha filho, seu avô contava essas histórias desde que eu era moleque.
Mas eu só vou acreditar no dia em que eu vir um... – disse ele saindo da
estrada e pegando uma pequena trilha que dava em sua casa.
Caminharam
em silêncio até que ouviram um animal rosnando. Pelo som, grave e alto,
parecia grande. Pararam de caminhar, mas continuavam a ouvir o rosnado.
Ambos sentiram um arrepio percorrer a espinha. A morte parecia
iminente. Ousaram dar mais passos, mas a criatura rosnava mais. Não
tiveram coragem de olhar para trás.
Decidiram correr. As passadas
do bicho batiam pesadas ao chão, e Sebastião foi ficando cada vez mais
para trás. A criatura de quase dois metros, pelos marrons e olhos
vermelhos, que estava ofegante e babando, alcançou o homem, dando-lhe um
violento golpe, derrubando-o ao chão. Sebastião lançou um olhar
suplicante para o filho que não pode fazer nada.
O lobisomem
lançou-se sobre o homem e mordeu diretamente no pescoço, enquanto ele
gritava desesperadamente. Seu sangue quente jorrava e a criatura parecia
se divertir com seu corpo, arrancando-lhe pedaços de carne, uivando e
rugindo.
– O Senhor é meu pastor, nada me faltará... – recitava o rapaz correndo e chorando.
Sepúlveda
cambaleava de um lado a outro da rua. Sua roupa estava suja e rasgada,
provavelmente devido a algum tombo. Não temia nada. Talvez não fosse
coragem, apenas a bebida, que demorava a lhe fazer efeito, mas
quando fazia, era devastador.
Abriu a porta de casa, que rangia
sombriamente, quebrando o silêncio que insistia em permanecer ali.
Ouviam-se apenas os grilos, os sapos e as folhagens que batiam uma à
outra com o vento. Descalçou-se e entrou lentamente, temendo acordar a
mulher, que estava no quartinho. Uma semana por mês ela dormia separada
do marido. Coisas de mulher...
Chegando a seu quarto conferiu as
janelas. Pelo caminho vinha pensando na história do Dr. Nunes. Era
melhor se precaver. Fechou a porta e trancou-a, pegando uma espingarda
que havia atrás dela. Colocou-a ao seu lado na cama e dormiu.
No
dia seguinte, a notícia sobre a morte de Sebastião espalhou-se como
rastilho de pólvora. Não que ele fosse muito querido. Aliás, ele era
muito conhecido pela ignorância com que tratava seus empregados. O que
chamou a atenção do povo foi a brutalidade de sua morte.
Sepúlveda chegou da venda com o pão debaixo do braço e com os olhos arregalados.
–
Que cara é essa, bem? – perguntou Margarete, que o aguardava no
quintal. Tinha por volta de um metro e sessenta, pele pálida e olhos
lânguidos.
– O compadre Sebastião morreu! – disse ele com a voz baixa. Nem ele mesmo conseguia acreditar no que dizia.
– Ara! Mas morreu de quê? – perguntou ela tomando o pão de suas mãos.
– Ah mulher! Um bicho atacou a ele e o filho no caminho de casa ontem à noite. O Zaqueu disse que foi lobisomem...
– Mas que absurdo! – disse ela levando as mãos ao rosto. – Não acho que isso exista...
–
Ah mulher! Mas agora a coisa é séria... – disse ele pegando um martelo e
alguns pregos no armário. – O compadre Moura já havia visto a criatura,
mas ninguém tinha morrido ainda. E eu mesmo não acreditava, mas depois
dessa... – disse ele saindo de casa. Voltou minutos depois com algumas
tábuas debaixo do braço.
– O que vai fazer? – perguntou Margarete, confusa.
–
Você não me abra as portas nem as janelas desta casa por nada esta
noite! – disse ele enquanto pregava as tábuas nas janelas. – Hoje vamos
caçar a criatura!
Ficou quase o dia todo reforçando as portas e
janelas e depois limpando a espingarda, que não podia falhar quando
fosse necessária. O sol já estava no horizonte e Sepúlveda precisava
estar pronto para a caçada. Aproximou-se da mulher, deu-lhe um beijo e a
abraçou.
– Eu te amo! Se algo me acontecer, saiba que sempre te amei e para sempre te amarei! – disse ele com os olhos marejados.
– Eu também te amo querido! Não há de te acontecer nada! – disse ela com ar tristonho.
O
grupo encontrou-se na venda, como combinado, e saiu com armas em punho
atrás da criatura. Inclusive Zaqueu, que havia perdido o pai
recentemente, estava lá, prometendo vingança. Dr. Nunes realmente não
havia ido. Mandou avisar que tinha um sério compromisso e que
infelizmente não poderia ir. Mas seu mais valente capataz faria às
ve-zes dele.
Caminharam mata adentro em meio ao silêncio, tendo
somente a lua como farol. Preparavam uma armadilha para o monstro.
Carregaram uma cabra que prenderam numa estaca fincada ao chão, ficando
eles à espreita. Chico, o dono da venda, rasgou a perna do animal,
crendo que o cheiro de sangue atrairia o lobisomem. Estava certo.
Puderam perceber o movimento brusco dos arbustos por onde ele passava, a
respiração ofegante e suas passadas que ficavam cada vez mais fortes e
próximas. Finalmente ele saltou sobre a cabra, mordendo ferozmente seu
pescoço. Mal podiam acreditar no que viam...
– Desgraçado! –
gritou Zaqueu saindo da tocaia na direção do monstro, com a espingarda
apontada para ele. A criatura deu um forte rugido e saltou para o meio
da mata novamente.
– Não Zaqueu! – gritaram eles. A atitude do
moço estava pondo tudo a perder. Já o tinham na mira das armas e agora
começariam do zero novamente.
O monstro agitava as folhas ao redor
do rapaz e toda a equipe se aproximou. Temiam pelo pior. A criatura
parecia estar se preparando para o ataque.
– Volte aqui seu
desgraçado! – disse ele disparando um tiro na direção da mata. Não
ouviram mais som nenhum. Nem dos galhos quebrando, nem da criatura
ofegante. De repente, os outros, que estavam a uma distância
considerável de Zaqueu, avistaram o monstro que caminhava lentamente e
silencioso.
– Não! – gritou Chico, mas era tarde. Zaqueu teve
tempo apenas de virar-se e desferir-lhe um tiro, mas a criatura o
devorou assim como fez com seu pai. Os homens atiraram nela e
acreditaram ter acertado, tamanho o rugido do monstro, que fugiu para a
mata.
– Minha casa fica para lá! – disse Sepúlveda preocupado.
Começou a pensar em sua mulher, sozinha em casa. Ela poderia estar
correndo perigo!
Correram atrás do bicho. Parecia que o terror de
Abaruna estava prestes a acabar. Avistaram-no caído à sua frente, já no
quintal da casa de Sepúlveda. O primeiro a se aproximar foi ele, que
logo viu a janela do quarto de sua mulher, completamente destruída.
–
Seu grande filho da mãe! – esbravejou ele. – O que fez com minha
mulher? - disse ele apontando a arma em sua direção. A criatura estava
ofegante e ferida, parecendo se arrastar para a casa. Seus olhos
lacrimejavam e ele rugia baixinho, como um filhote na presença da mãe. –
Volte para as trevas, monstro! – disse Sepúlveda atirando no lobisomem.
Ele deu um grande grito e ficou encarando-o, com a respiração rápida e
curta. Aquele olhar lhe era familiar...
A criatura foi perdendo
tamanho. Seus pelos sumiam rapidamente. As feições femininas não
demoraram a surgir e o corpo esguio de Margarete jazia moribundo em
frente a seu marido, que não podia fazer mais nada. Tudo então começou a
fazer sentido. As noites que ela preferia passar sozinha, eram
exatamente as sete noites da lua cheia...
– Não! Margarete! – disse ele jogando a arma ao chão e abraçando o corpo nu da esposa, chorando copiosamente.
– Me perdoe... – disse ela, expirando em seus braços.
–
O que estão esperando? – esbravejou ele com o rosto banhado em
lágrimas. - Terminem logo com isso! – disse ele desesperado, abraçando
ainda mais o corpo flácido da esposa. Sua vida agora não fazia mais
sentido.
O capataz de Dr. Nunes tentou detê-lo, mas Chico e Moura o
impediram, pois entenderam a súplica do amigo. Sepúlveda não queria que
sua mulher ficasse conhecida como o monstro. Entregou então a sua vida,
para que salvasse ao menos a reputação dela. Seus amigos, com as armas,
o livraram do martírio e ele tomou o lugar de Margarete. Ficou
conhecido como o terrível lobisomem de Abaruna, morto enquanto devorava a
própria mulher.
George dos Santos Pacheco
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