O Flautista das Sombras


Caminhavam apressados e ofegantes pela mata, o desejo os impulsionava. Namoravam há alguns meses e a libido adolescente tornavam os corpos brasis; nada importava a não ser eles mesmos. Eram escravos do Conde Barcelos, talvez o maior produtor de café da Região Serrana Fluminense em 1791. A vila era próspera, contava com um comércio aquecido, uma locomotiva que circulava por uma linha férrea implantada pelo Conde, e a melhor casa de moças-damas das redondezas.

O longo vestido atrapalhava a moça mas não a impedia de prosseguir entre os arbustos mais altos. Contudo, ela o suspendeu a fim de correr com mais facilidade. Ambos gargalhavam, emoções os assaltavam. Enfim, atiraram-se sob a grande copa de uma árvore. O ar era fresco, o sol ameno. As cigarras, entretanto, emitindo seu zumbido característico, lembravam que o dia esquentaria ainda mais. A vegetação do Condado de Setúbal era esplêndida, formada por beijos, azaléias e jasmins, alguns ipês, eucaliptos e araucárias. As flores pareciam cobrir os montes quase por completo. Ele deitou-se sobre ela e afagando seus cabelos beijou-a intensamente.

– Eu te amo...

– Eu também te amo...

Retiravam suas roupas apressadamente, não podiam se dar ao luxo de serem surpreendidos pelo Capitão-do-Mato naquela situação. Contudo, foram impedidos por algo menos agressivo. Uma melodia leve e cativante invadiu seus ouvidos, algo doce e maravilhoso.

– Está ouvindo isso? – perguntou Sebastião.

– O quê? – disse Conceição.

– Esse som... parece... uma flauta...

– Sim, sim! Posso ouvir... é... maravilhoso!

Levantaram-se sem incômodo e perseguiram o som que aumentava de intensidade a cada passo que davam. Chegaram a uma clareira com arbustos mais rasteiros do que o restante da mata. A melodia parecia vir da direção de uma pedra chata, mais ou menos no centro daquele lugar, coberta por musgos e um pouco de capim.

– Parece vir daqui...  – observou Tião. Ela não disse nada, apenas sorriu boquiaberta, com o olhar estupefato. Ele aproximou o rosto da pedra a fim de verificar a música. Sim, ela vinha dali. O negro forte apoiou as mãos na pedra e a forçou, deslocando-a lentamente. Uma cova profunda e escura, semelhante a um túnel, pode ser avistada, e o volume do som tornara-se quase insuportável agora assim como os miasmas que dele emanavam.

Os dois escravos se aproximaram da cova, como num feitiço, e então algo os sugou com incrível brutalidade para dentro, e gritos ecoaram na solidão da mata.                        
  ***
Em pouco tempo a cidade estava infestada de ratos que possuíam as medidas de um cachorro de porte médio. Eram ferozes e perigosos, exterminavam animais e pessoas pelo povoado – principalmente crianças, causando pânico e desespero. Alguns homens partiram em caça dos animais, mas suas armas de fogo pareciam não ser eficazes, pois para cada animal abatido, tinha-se a impressão de que dois surgiam, sem qualquer explicação. O número das feras aumentava incessantemente e começou-se a temer pelo futuro do Condado da Vila de Setúbal.

Estando o Conde Barcelos trancado em seu escritório, preocupado com a situação da vila e sem ter uma solução eficiente para a peste, eis que sua porta se abre vagarosamente. Um homem de vestes negras se aproxima lentamente; seu chapéu, também negro, encobre por completo seu rosto com sua sombra, sendo visível apenas duas contas vermelhas e brilhantes no seio de sua face. O conde teve um sobressalto e erguendo-se da cadeira, sacou rapidamente uma garrucha de dois tiros da gaveta da mesa, apontando na direção do homem.

– Pare aí mesmo! Como ousa...

– Abaixe essa arma, seu tolo... – disse o homem com sua voz rouca, após um muxoxo.

– Mas você... – balbuciou Barcelos, parecendo reconhecê-lo.

– Assombrado? – disse ele ao sentar-se na cadeira em frente à mesa do Conde.

– Não... não é possível! – exclamou ele, deixando-se cair no assento, sua tez era pálida e fria.

– Tudo é possível sobre esta terra e abaixo dela.

– O que... o que você quer?

– Nada que você não possa me dar...

– Então é você o responsável por estes ratos, seu bruxo... observou o Conde.

– Talvez... mas posso fazer com que voltem para onde vieram. Puxa... Conde da Vila de Setúbal... o Imperador foi generoso contigo...

– Não desconverse! – disse o conde erguendo-se e desferindo um soco na mesa. – O que quer para nos deixar em paz com seus ratos?

– Abaixe o tom de voz, meu caro. Desse jeito você se torna cada vez mais patético.

– Diga logo o que quer!

– Sua filha.

– Minha filha?

– Por que o espanto? Achou que ela seria sua para sempre? Nunca pensou que alguém a levaria algum dia? Eu? – disse o homem.

 – Não! Analice não!

 – Então, temos um trato? – disse o homem num sussurro ao arranhar sua mão esquerda com a ponta da unha enegrecida da mão direita, fazendo fluir um sangue negro dela. – Levarei os ratos embora e na volta, você me entrega Analice... – disse após se levantar e caminhar em direção a porta, que se abriu e fechou após ele, sem que fosse necessário que ele a tocasse.

O conde sentiu um intenso ardor na mão direita e observou que esta tinha um corte na palma, de onde corria sangue vivo. Sua porta abriu-se novamente, mas desta vez era a Condessa.

– O que foi Henriques? Parece que viu um fantasma... – disse ela.
– Eu vi, querida. Eu vi...    O homem de negro saiu da propriedade do conde e caminhando pela estrada de chão, empunhou sua flauta de bambu e começou a tocá-la. As canções pareciam seduzir os animais, que se puseram a sua ré caminhando ao ritmo da melodia. Homens e mulheres apareciam à janela de suas casas para apreciar o fenômeno, rendendo graças pelo desaparecimento das feras. O flautista atravessou a vila recolhendo os ratos, que podiam ser contados na proporção de cento e quarenta e quatro mil. 

***

Aos poucos a rotina da cidade foi voltando ao normal. Menos para uma pessoa. O Conde Barcelos tinha pesadelos terríveis e parecia doente. Após seu encontro com o flautista, mais do que depressa ele tomou papel e caneta tinteiro, e redigiu uma carta a um velho amigo, o bispo. Nela, encomendava a filha para um dos conventos do Estado, fato que ocorreu um mês após a aparição do homem de negro.

Sete semanas depois daquele encontro, numa noite de sexta-feira, o flautista reapareceu. Barcelos estava trancado em seu escritório, quando o Senhor dos Ratos surgiu das sombras, para cobrar seu pagamento.

– Boa noite, Sr. Conde... – sussurrou ele com sua voz rouca.

– Ora... você outra vez... – respondeu o nobre, assustado.

– Achou que me esqueceria? Onde está minha moeda?

– Maldito demônio! Bruxo! Agora minha filha está em segurança em um convento. Eu jamais permitiria que a levasse. Jamais! – esbravejou o homem, com repentina coragem.

– Ora seu... insolente! – gritou o flautista, mostrado sua verdadeira face, de pele retorcida devorada pelas chamas, e uma expressão demoníaca. – Todos são capazes de escolher o próprio destino. E você escolheu o seu... – completou ele, e o conde permaneceu tetanizado enquanto o homem de negro cravava violentamente a flauta em seu peito, fazendo jorrar sangue sobre a mesa.

O flautista sorveu o sangue da flauta, e então saiu daquelas terras entoando o instrumento com todo vigor, invocando os terríveis ratos que emergiam das sombras. Os homens estagnaram-se, ao ouvirem a canção funesta, e as criaturas os atacavam aos bandos, num banquete macabro, dizimando toda a população masculina da Vila de Setúbal. O homem de negro continuava a tocar sua flauta, seguido por todas as mulheres – velhas, viúvas, casadas, escravas, senhoras, jovens e moças – que dançavam nuas, ferindo os pés no cascalho e gravetos do caminho. Bailavam entre os corpos dilacerados de seus pais, filhos e irmãos, caminhando lentamente para a cova, o descanso eterno do último bruxo queimado pelo Tribunal do Santo Ofício em terras brasileiras: o flautista João Cândido Marinho, condenado por amar demais a filha de um nobre. 

Era uma vez.

George dos Santos Pacheco
pacheconetuno@oi.com.br

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