O Caso do Violador da Noite


I
O Friburguense. Nova Friburgo, 17 de novembro de 1934

MAIS UM TÚMULO VIOLADO EM NOVA FRIBURGO

Na manhã da última quinta feira, foi encontrado mais um túmulo violado no cemitério municipal de Nova Friburgo. Desta feita, a vítima foi a Senhora Maria Eugênia de Alencar Spitz, esposa do renomado farmacêutico Dr. Amaro Eduardo Spitz, falecida na manhã do dia 12 de novembro de apendicite. A família está consternada e pede às autoridades que tomem as devidas providências. A polícia ainda não tem suspeitos.

O VIOLADOR DA NOITE

Segundo a polícia, o Violador da Noite – como alguns populares apelidaram o meliante – levou um cordão de ouro, pulseiras de prata, e anéis com pedras preciosas com que a vítima havia sido enterrada. Caso semelhante aconteceu há cerca de dois meses, com o Senhor José Augusto Boechat. Na ocasião, foram levados alguns dentes de ouro que o malfadado comerciante usava.

II

– É ouro de qualidade! – disse a distinta senhora com a maleta aberta.

– Oh! Sim! Disso não tenho dúvida, Sofia! – respondeu a outra senhora, que observava atentamente uma coleção de gargantilhas e pulseiras. – Pago a quantia que for, minha querida!

– Mas não é para tanto, não se trata de nenhuma fortuna, Dona Florípedes! Isso aqui é uma pechincha. Meu marido me traz de umas viagens que ele faz à capital. Alguns homens se desfazem de tudo que os lembre a mulher quando ela se vai...

– Ou as vendem, ou enterram junto com as senhoras. – completou Florípedes, ainda observando o material, pousando alguns colares sobre o peito. – Sinceramente, acho que a venda dessas belezinhas é o mais conveniente. A defunta não irá usar nada disso no além-vida, e ainda se corre o risco de algum usurpador fazer o que fez com a Dona Eugênia. Uma lástima, um sacrilégio...

– Também penso assim, Dona Florípedes. Alguém precisa parar isto! – disse Sofia sem olhar para sua interlocutora, distraída ao revolver a maleta. – E deste? Gostou?

– Minha nossa! Mas este é maravilhoso! – respondeu ela com os olhos mais brilhantes do que qualquer esmeralda.

***

Dona Sofia era uma querida comerciante de joias na cidade. Seus principais clientes eram as esposas dos fazendeiros da região, e alguns comerciantes, que pretendiam juntar-se às classes de maior expressão municipal: os políticos, médicos e advogados. Frequentavam saraus, chás e outros tantos eventos realizados pelos nobres, e acreditavam necessitar apresentarem-se à altura dos anfitriões e convivas. Para isso, gastavam rios de dinheiro com as mais belas roupas e jóias, que seus esposos pagavam sem temor. Afinal, eles também desejavam se aproximar cada vez mais daquela gente, e fariam o que fosse preciso. Alguns deles chegaram a ingressar com sucesso na política da cidade, graças à simpatia de suas mulheres (e algumas “aproximações”, no mínimo reprováveis, com os maridos de suas recentes amigas).

Assim, Dona Sofia era uma simpática senhora de meia-idade, que prosperava junto ao seu homem, em meio a essa rede de interesse e vaidade.

III

– Não vou comer! – esbravejou o velho.

– O senhor precisa comer, senão ficará muito fraco! – disse com carinho a linda jovem que cuidava do Sr. José Nideck, um bem sucedido agricultor, viúvo e adoentado. Era conhecido por sua avareza, não havia argumento que pudesse fazer o homem abrir a mão. Os parcos recursos técnicos de que o Dr. Braune dispunha, na primeira metade do século XX, indicavam alguma espécie de câncer não tratável, e o velho já não tinha tanto tempo de vida. A mocinha, de olhos claros e longos cabelos caramelo, estava sendo remunerada pelos filhos do homem para que cuidasse dele em seus últimos dias de vida, que precisavam ser, ao menos, dignos. Sentada à beira da cama, tentava servi-lhe caldo de inhame, mas este era mais teimoso que uma porta.

– Não comerei, já disse! Eu quero ver sua pombinha... – disse ele enfiando a mão entre as pernas da moça, que se levantou assustada, derrubando o prato ao chão.

– O que é isso? O senhor me respeite! Eu tenho idade para ser sua filha, talvez sua neta! – esbravejou ela.

– Ora! Não seja tão pudica! Sou um velho à beira da morte, dê-me um fim de vida feliz! – argumentou o velho passando a mão trêmula sob o nariz, aspirando com prazer o cheiro de seus dedos. – Ademais, todo mundo tem seu preço. Veja... – disse ele puxando a gaveta da cabeceira. Pôs sobre seu colo uma pequena caixa de madeira que abriu em direção à jovem, retirando algumas joias de seu interior. – eram de minha esposa. Mas agora te dou. São suas. Entretanto, tire esse vestido, sem muita pressa... Quero te ver sem ele. Preciso tocar suas carnes macias e sentir mais uma vez esse maravilhoso cheiro agridoce...

– Seu velho nojento! – murmurou ela com lágrimas nos olhos, mas ele limitou-se a estender mais ainda a pequena caixa de madeira em sua direção.

A moça olhou para trás, a fim de certificar-se de que a porta estava realmente fechada. Evitando o olhar do velho, começou a retirar seu vestido e suas lágrimas escorriam pela face e pingavam pelo queixo. E Sr. José Nideck escancarava a boca num sorriso libidinoso, deixando à mostra sua coleção de dentes dourados... Nessa mesma noite, o coração do doente agricultor não resistiu e parou de bater.

IV

Edésio caminhava apressadamente sob a chuva fina em direção a uma casa na Vila Guarany. Bateu à porta, ofegante, e uma mulher morena, de profundas olheiras arroxeadas o atendeu. Não trocaram uma só palavra e ela franqueou-lhe a passagem. O homem caminhou em passos pesados sobre o piso de madeira, abrindo uma porta envelhecida nos fundos da casa. Lá dentro, um pequeno homem estava sentado em um tamborete, manuseando um maçarico direcionado para um cadinho cheio de um material em fusão. Ao perceber a presença de alguém, suspendeu a operação e voltou-se para a entrada do cubículo, erguendo o óculos de solda até a testa.

– Outro. – disse Edésio seriamente.

– Outro?

– Outro.

– Então?

– Preciso de sua ajuda.

– Já não te ajudo o bastante?

– Você é pago para isso.

– Você bem sabe que só faço isso para pagar o tratamento de Verônica. – disse o homem ao desligar o maçarico. – Estou farto desse serviço, isto não está certo. Não está.

– Poupe-me de suas convicções moralistas. Será a última vez, lhe prometo.

– Na primeira vez você disse que seria a única.

– Será a última, eu prometo.

– Não prometa o que não pode cumprir.

– Chega dessa palhaçada! – esbravejou Edésio ao dar um soco no tampo de madeira onde Wilson trabalhava. – Será essa noite. – completou, recobrando a compostura. – O velho estava com “aquela doença ruim” e não tardarão a enterrá-lo. Vou ao velório dele para observar bem o ambiente e não haver falhas mais tarde.

– E o que quer que eu faça?

– Preciso que fique de vigia do lado de fora do cemitério. O caso da Dona Eugênia chamou muita atenção, temo que a polícia apareça por lá. Esteja pronto às vinte e duas horas. – disse Edésio ao se levantar.

– Você é um desgraçado! – disse o pequeno homem, e o Violador apenas o ignorou, seguindo seu caminho.

***

Edésio chegou à capela, logo depois da conversa com o ourives. Estava lotada, o velho e seus filhos eram muito conhecidos. Sr. José Nideck estava bem aprumado, vestido de terno preto, as mãos entrelaçadas sobre o peito. Em seus dedos, alguns anéis de ouro com pedras e sob suas mãos, uma corrente dourada denunciava a existência de um relógio de bolso. Em seu rosto um esgar de sorriso dava ao velho um semblante menos carregado do que se esperava de um doente de câncer. À época não existia tantos remédios para prolongar a vida do enfermo, de modo que não havia tempo para que ela o castigasse muito.

O caixão nababesco era revestido de uma cor mogno brilhante e estava decorado com margaridas até o meio da barriga do defunto. No salão da capela havia diversas coroas de flores, elaboradas com cipreste, o que dava àquele lugar um odor nauseabundo insuportável. Os filhos e filhas do homem choravam comedidos pelo local e revezavam-se ao caixão, alisando os cabelos do coitado, e recebendo os cumprimentos dos amigos. Junto a eles também estava uma jovem de olhos claros e longos cabelos cor de caramelo, também muito comovida. Por vezes, alguma velha senhora puxava um cântico ou outro de velório, que fazia qualquer um se emocionar:

“Com minha mãe estarei, na santa glória um dia! Junto à Virgem Maria, no céu triunfarei. No céu, no céu, com minha mãe estarei...

V

Edésio aproximou-se do caixão como um velho amigo, passou a mão nos cabelos do homem, observou os detalhes que lhes eram pertinentes e sussurrou:

– Até mais tarde...

Ele afastou-se da urna e pouco tempo após ela foi fechada, causando mais desespero aos familiares, uma dor funesta, mescla de tristeza, remorso, e saudade. O cortejo fúnebre seguiu em direção à necrópole, sob uma chuva fina e melancólica de um dia cinza de primavera, entoando as mesmas canções fúnebres, chorando as mesmas lágrimas, sentindo as mesmas dores.

Antes que o caixão fosse arriado à cova, houve discursos emocionados e orações balsâmicas. Ressaltavam como ele havia sido bom. Todos são bons quando morrem.

Então ele foi baixado pelos coveiros, fazendo surgir lenços brancos que eram atirados junto com flores no túmulo, pá de cal e fim. Tudo consumado. É quando se tem a certeza de que não há mais volta; este ato funciona como se fosse a chancela da morte. Acabou, fim. E subitamente, em questão de segundos, a garoa triste se transformou em tempestade, desabando em grossas gotas sobre a comitiva, que corria por entre os túmulos para procurar abrigo. Restaram apenas alguns de seus filhos que acompanhavam o serviço dos funcionários do cemitério. Edésio saiu, não muito apressado, dando uma última olhada em volta para marcar bem o lugar.

VI

Às dez e meia da noite Edésio se aproximou da parte anterior do cemitério, onde Wilson já se encontrava, a pedido do amigo. Sempre fora um bom companheiro, mas corrompeu-se quando se tornaram homens, era um sujeito amargo e de hábitos não muito recomendáveis. Dado a falcatruas, embustes e esbulhos, acabou metendo o ourives nessa aventura nefasta, que para cuidar da saúde de sua esposa, submeteu-se às vontades do malfeitor. A mulher estava perdendo peso com velocidade, estava sempre fraca e nenhum profissional conseguia diagnosticar seu problema. Gastava rios de dinheiro para que ela recuperasse o viço da juventude, e mais gastaria, se o tivesse.

– Porque demorou tanto? – repreendeu ele.

– Vai ficar me censurando? Precisei reforçar a pá, não posso me dar ao luxo dela quebrar no meio do meu trabalho. Percebeu alguma movimentação diferente por aqui?

– Não, parece que apenas loucos ficam acordados a essa hora no cemitério. – respondeu Wilson sem olhá-lo.

– Dispenso seus comentários. Ao menos a chuva parou. – observou olhando para o céu. – Fique de guarda e qualquer coisa, assovie. – disse Edésio tentando atravessar a cerca, munido de pá e lampião.

Seguiu lentamente entre os túmulos, dividindo o som de seus passos com o cantar dos grilos e de alguns sapos. O cheiro do jasmim, que estava espalhado em todos os cantos da necrópole, era agradável e inundava suas narinas. Seus pés, de vez em quando, atolavam em alguma poça de lama, mas eram facilmente retirados.

Levou pouco mais de vinte minutos para encontrar o túmulo certo. Olhou para o céu novamente, parecia não haver chance de chuva. Benzeu-se e com a pá, começou a golpear o chão ainda úmido, retirando a terra para o canto. Era bom ter vindo pouco depois do sepultamento, assim, o material ainda não estava suficiente firme e o corpo do homem ainda não havia se deteriorado o bastante, tornando o serviço menos penoso.

Atingindo o tampo do caixão, retirou o restante da terra com bastante cuidado, afim de não danificá-lo. Limpou o suor com as costas da mão, e em seguida posicionou a lâmina da pá na fenda lateral, forçando para que a urna abrisse sem fazer muito barulho. Afinal, no silêncio da noite, qualquer som era perceptível. Houve um pequeno estalo e desfazendo-se da ferramenta, sacou a tampa do invólucro, colocando-a com um esforço razoável à parte.

O velho estava da mesma forma como o encontrara pela última vez, não havia ainda o menor sinal de corrupção em seu corpo. Edésio ajoelhou-se sobre a bacia do homem e inclinou-se para observar melhor seu rosto. Aproximou o lampião e afastou seus lábios. Ele tinha quatro dentes de ouro divididos entre a arcada superior e inferior. Havia poucos molares, mas nenhum de ouro. Retirou de um dos bolsos um pequeno alicate que usou para segurar firmemente os dentes do velho, retirando um a um, com o esforço e a paciência de um dentista, apoiando a outra mão no rosto do defunto.

Colocou os dentes no bolso e aproximou o rosto do peito do homem, sendo possível auscultar o funcionamento da máquina do relógio. Afastou lentamente a mão do homem, retirando seus anéis com alguma dificuldade, pois os dedos estavam um tanto inchados. Enfiou a mão no bolso de dentro do terno e retirou o relógio, que já marcava meia-noite. Surpreendentemente, o velho segurou seu punho com uma força escomunal e o desespero tomou conta de Edésio.

O homem puxava sua mão com todas as forças que possuía, gemendo e chorando nesse vale de lágrimas. A essa altura teve a absoluta certeza de que o homem, imóvel, o comtemplava com grande ira, que parecia transbordar de seus olhos. Ele continuava a puxar sua mão e as veias de seu pescoço saltavam, tamanho era o esforço que fazia e a angústia que sentia. Deu então um forte grito de pavor, que ecoou na madrugada. Ao ouvi-lo, Wilson abandonou imediatamente seu posto, correndo como nunca correra antes.

Após o grito, Edésio sentiu uma dor violenta no peito, e desabou sem vida sobre o homem. Sr. José Nideck, sempre fora avarento em vida, na morte, não seria diferente.

VII

O Friburguense. Nova Friburgo, 01 de dezembro de 1934

CASO DO VIOLADOR DA NOITE CHEGA AO FIM

O Caso do Violador da Noite, finalmente chegou ao fim. Foi encontrado morto no cemitério municipal, junto à cova violada do Senhor José Antônio de Meirelles Nideck, falecido no dia 25 de novembro, o Senhor Edésio Alexandre da Silveira Lopes. Constavam em seus bolsos quatro dentes de ouro e anéis com pedrarias. O homem teve um infarto agudo do miocárdio enquanto subtraía um relógio de bolso, também de ouro, do defunto. O artefato havia pertencido ao pai do falecido e curiosamente estava parado marcando meia-noite.

George dos Santos Pacheco
pacheconetuno@oi.com.br

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